Título: E a enchente deixou de ser lembrança
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/05/2005, Metrópole, p. C1

Difícil acreditar, mas São Paulo havia conseguido esquecer o que era uma enchente de verdade. Ontem, a cidade se lembrou. E descobriu que está desacostumada a conviver com cheias que alagam as Marginais do Tietê e do Pinheiros. A capital parou, assim como seus cidadãos. Sem saída, muitos desistiram de chegar ao trabalho. Outros insistiram e levaram horas para chegar ao seu destino. Vários seguiram a pé. Uma chuva recorde pôs à prova a obra mais visível do governo Geraldo Alckmin, o aprofundamento da calha do Rio Tietê. E os paulistanos, intrigados, voltaram a se perguntar: quando virá a próxima? "Hoje foi o pobre quem levou vantagem, né?", ironizou o paraibano Pedro Barbosa, de 30 anos, operário da bilionária obra no Rio Tietê. "Quem tem carro ficou parado." Como tantos outros empregados e prestadores de serviços que trabalham na Marginal, ele passou o dia a contemplar os efeitos de tanta chuva - 140,4 milímetros em 17 horas. Praticamente, os operários não trabalharam no dia de ontem. Ficaram apenas reparando e limpando as máquinas, tirando o excesso de lama do canteiro e olhando o estrago do temporal.

O rebocador Lindalvo Alves da Silva, operador de uma escavadeira hidráulica, teve sorte. Sua máquina estava estacionada na margem do rio, a salvo da inundação. Mas outras duas escavadeiras mecânicas ficaram submersas no leito do Tietê. Um rebocador, que podia ter flutuado, acabou debaixo d'água também, preso por cabos de aço. "Fico triste com o prejuízo que a firma leva", disse Alves da Silva. "O homem faz o possível para conter a natureza, mas ela não tem limite."

As chuvas fortes começaram na noite de anteontem. O transbordamento, o que fez as placas "Três anos sem enchentes no Tietê" perder sentido, ocorreu de madrugada. A pior situação estava em toda a região da Marginal do Tietê. Em pontos como nas proximidades da Ponte da Vila Guilherme, na zona norte, as pistas local e expressa ficaram alagadas nos dois sentidos. No sentido da Rodovia Ayrton Senna, cerca de 50 carros ficaram ilhados. Muitos motoristas tiveram de passar a noite na rua.

NO TETO DO CARRO

Um pequeno caminhão e uma van pararam sob a Ponte do Jaguaré, na Marginal Pinheiros. Os quatro ocupantes tiveram de subir no teto do carro à espera de socorro. Aguardaram mais de uma hora. "Fomos pegos de surpresa. A água subiu rapidamente. Se, com as obras, o rio transbordou, sem elas estaríamos mortos", comentou o técnico em telefonia celular Wendell Bernardes."

Na Avenida Santos Dumont, em frente da Praça Heróis da FEB, uma ambulância ficou ilhada. Eram por volta das 3 horas. "Ia transferir uma criança de 9 anos com desidratação. De repente o carro parou", disse o motorista Frederico da Silva. A criança conseguiu sair dali depois que o hospital providenciou uma outra ambulância. Mas Silva teve de aguardar a retirada do carro.

Cenas de desespero marcaram a vida dos ilhados. Um homem que ficou preso na Marginal do Tietê pegou uma vara e tentou desentupir uma boca-de-lobo. Foi ajudado por um menino. Os sacrifícios se prolongaram por toda a manhã. Havia carros parados em toda a extensão das marginais. Todos à espera de socorro nos acostamentos, sobre as calçadas e nos canteiros centrais. O motorista José Nunes, de 58 anos, era um deles.

"Minha história começa às 2 horas. Já são três da tarde e continuo aqui", afirmou, parado pouco depois da Ponte das Bandeiras. Ele havia levado funcionários embora de Guarulhos para Osasco. Na ida, fez, como milhares de paulistanos, malabarismos pelo trânsito da cidade. Em vez das marginais, engarrafadas, optou pelas Avenidas Salim Farah Maluf, Radial Leste e Rebouças até chegar a Osasco. Na volta, arriscou o caminho das marginais. Praticamente parada, preferiu parar o carro às 7h30 num posto e dormir um pouco. Às 10 horas, tentou seguir viagem. Mas a lentidão fez que o combustível acabasse. "Sou só mais uma vítima dessa confusão."

Debaixo da Ponte Cruzeiro do Sul, na zona norte, carros se arriscavam perigosamente a atravessar o canteiro para fugir de uma poça d'água. Bom para o mecânico Daniel Gonçalves da Silva, de 39 anos, e ruim para o representante comercial Vladimir Cunha Dias, de 38. O primeiro viu na enchente do Tietê um bom negócio. Como os clientes não chegavam, foi até eles. Em poucas horas, prestou socorro a motoristas, como Cunha Dias, que deixaram entrar água no motor. "Não posso ficar parado. Já atendi quatro carros e um caminhão."

Cunha Dias desembolsaria entre R$ 15 e R$ 20 para pagar o mecânico delivery. Mas, ao menos, perderia menos tempo. "Podia ser uma obra mais bem-feita, não?", questionou. Segundo ele, quando saiu de casa em Pirituba, já dava para perceber que o dia seria difícil. "Lá é um termômetro. Se a água acumular no quintal, sinal de que choveu demais. Mas não imaginava tanto assim."

NEGÓCIOS PERDIDOS

Na noite de anteontem, Daniel Henrique Bezerra, de 42 anos, preferiu ir embora antes de a chuva engrossar. Ele é um daqueles ambulantes que vendem diariamente pipoca e salgado de polvilho no trânsito parado das marginais. Pretendia chegar de manhã na Marginal do Tietê, mas levou quase três horas dentro do ônibus. Desceu no terminal Santana do metrô, a alguns quilômetros do seu ponto de venda. "Quebrei a cara, porque se tivesse ficado ou chegado cedo teria ganho num dia o que ganho num mês." Até as 17 horas, ele já havia vendido R$ 80 em salgadinhos.

No Centro de Convenções do Anhembi, onde ocorre a Fispal Tecnologia, maior feira de alimentos do Brasil, outro retrato do dia de caos na cidade. Às 11 horas, quando as portas se abriram para o início de mais um dia de negócios, havia pouquíssimos visitantes. Nem mesmo expositores. As imediações do Parque do Anhembi ficaram intransitáveis, como a Praça Campo de Bagatelle, a Avenida Olavo de Fontoura e a própria Marginal do Tietê. A previsão mais otimista, segundo os organizadores, era de uma queda de 60% na visitação.

"Hoje é um dia perdido", resumiu o executivo Eduardo Gianesi, presidente da Sidel Brasil, uma empresa de equipamentos para produção de garrafas PET. Às 17 horas, no estande da companhia, muitos salgados, doces, vinho, refrigerante e uma sala repleta de pessoas. Mas só três delas eram clientes, o restante eram os funcionários da empresa. "Essa é uma feira internacional e muitos estão vindo pela primeira vez à cidade. Imagina a impressão que vão levar daqui?"

Para a microempresária Kátia Melo, dona da Fluimak, de Goiânia, o dia no Anhembi representou apenas perda de investimentos. Ela teve de cancelar um encontro com um fornecedor - não teria como transitar com a cidade parada pela manhã - e não viu os clientes chegar à feira. "Esperávamos bons negócios, mas por força da natureza tivemos um dia a menos para trabalhar."

Ontem, houve aqueles que preferiram ser produtivos em casa a ser improdutivos no trânsito. Para os andarilhos, foi um dia de revanche. Do alto da Ponte da Vila Jânio Quadros, a telefonista Maria Lúcia Dantas, de 33 anos, apontou para o engarrafamento e ironizou: "Olha que lindo cartão-postal nossos governantes deram para a São Paulo."