Título: Oração no altar do auto-engano
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/05/2005, Nacional, p. A6

Governo repete, com a CPI, equívocos cometidos na eleição da presidência da Câmara Pensando bem, o PT e o governo não trabalharam mesmo para impedir a instalação da CPI dos Correios. Não dispõem de plano estratégico, seja para retirar assinaturas ou para montar uma operação soma zero semelhante à que levou a comissão de inquérito do Banestado ao malogro da mistura de inocentes e culpados no mesmo saco, resultando naquele tipo de absolvição coletiva à qual se convencionou dar o nome - numa imagem paupérrima - de "pizza".

Não há nada, plano a, b, c ou d, e isso ficou claríssimo ontem durante a sessão de leitura do requerimento de instalação da CPI, no Congresso. Antes, as erráticas ações de imolação governamental no altar do despudor já haviam indicado que a única estratégia disponível era a do voluntarismo, sustentando a "certeza" de que daria tudo certo, pois os signatários do requerimento terminariam por se curvar à força do Diário Oficial.

Desse tipo de auto-engano já havia padecido o governo quando acreditou que a posse do poder, por si só, garantiria a eleição do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh para a presidência da Câmara. Os petistas erraram tudo o que podiam errar e depois saíram distribuindo responsabilidades ao alheio.

Agora ocorre o mesmo e na sessão de ontem no Congresso a oposição, ladina e experiente, comemorava o fato. A delicadeza da situação pedia comedimento e sobriedade. A começar pelo reconhecimento por parte do governo de que seus melhores quadros, na tribuna e no bastidor, estão do lado oposto, consideram equivocada a tentativa de agredir as evidências.

Natural seria, portanto, falar o menos possível e agir com eficácia. O governo, ao contrário, caçou com gato e escalou para a defesa parlamentares desprovidos de habilidades verbais, e até mentais, para tanto. A cena, com isso, ficou patética.

Com argumentos fracos e mal formulados, os defensores conseguiram, no máximo, acentuar as incoerências com o passado, expor o partido da CPI em luta aberta contra uma CPI, exibiram desespero, atacaram companheiros de bancada, mostraram-se carentes de uma boa idéia para pôr em prática até a meia-noite (prazo limite para a retirada das assinaturas do requerimento) sem aprofundar suspeitas e insistiram na teoria da conspiração como se o governo fosse frágil a ponto de se desmilingüir por causa do envolvimento de um presidente de partido aliado em investigações de corrupção numa empresa estatal.

Político este que pauta suas ações pela palavra de um funcionário flagrado em ato de suborno: o deputado Roberto Jefferson usou, tanto para apoiar como para retirar apoio da CPI, as declarações de Maurício Marinho segundo as quais cometeu apenas uma bravata ao apontá-lo como comandante em chefe do esquema de corrupção nos Correios.

Indiferente a essa evidente encenação - pois não há como conferir veracidade a uma peça que serve ao mesmo tempo à defesa e à acusação -, dois ministros com assento no Palácio do Planalto, José Dirceu e Aldo Rebelo, passam dias correndo atrás do deputado Jefferson que se recusa a recebê-los e, só o faz, quando os ministros o pegam de surpresa em casa.

Não para impor reparos à sua conduta, mas para retomar com ele as bases da boa parceria.

Enquanto isso, rodam nas entranhas da administração federal as manivelas de liberação de recursos de emendas parlamentares e juramentos de cumprimento de promessas antigas para o preenchimento de cargos públicos.

Se isso é estratégia que permita a deputados e senadores recuarem da CPI sem junto com isso enterrar na lama as respectivas reputações, a oposição pode tirar férias porque já existe quem desempenhe suas funções com mais competência.

Num misto de auto-engano e equívoco, o governo acabou por patrocinar uma comissão de inquérito na qual seus adversários não faziam muita fé. Fora isso, agiu de uma forma tal que, se quase 100 parlamentares mudarem de idéia a poder de incentivos oficiais, o Congresso se verá na obrigação de cortar mais da sua já tão apodrecida carne.