Título: Legalidade violada
Autor: Celso Sanchez Vilardi
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

O combate à criminalidade - exigência justa da sociedade - deve ser realizado por meio de investigações bem-feitas e de processos que obedeçam aos limites da legalidade, pois só assim será possível obter punição para os criminosos. Como cidadão e advogado, devo defender a correção das investigações, a lícita produção de provas e, acima de tudo, a busca por uma sentença justa. Para tanto é necessário agir em conformidade com a lei, e não ao seu arrepio. Do contrário, mais cedo ou mais tarde o processo resultará em absolvição, mesmo quando se trata de um criminoso, pelo simples fato de que as provas ilícitas são desprezadas. Por isso, não se deve cogitar de restringir as liberdades individuais e as garantias do cidadão brasileiro, conquistadas a duras penas. Não é possível que, sob o argumento de combater a criminalidade, se dê o retrocesso. Não pense o leitor que a defesa da intimidade, da privacidade e, principalmente, da liberdade pode ser relaxada tendo em vista o pretexto relativo ao combate da criminalida de. Ledo engano. Quando um juiz desrespeita uma garantia constitucional de um suposto criminoso, na verdade está a desrespeitar a garantia constitucional do cidadão brasileiro. Um dia isso acontece com um criminoso; noutro, com um inocente... Nos últimos tempos nos habituamos às operações espetaculares realizadas pela Polícia Federal, que busca a mesma imagem que os filmes nos trazem do FBI. As operações têm sido nomeadas e a televisão nos mostra prisões cinematográficas, com direito a arrombamento de portas. Já é público que muitas das imagens gravadas não passam de encenação, cujos artistas são os agentes federais e os próprios presos, sem que estes últimos possam escolher se querem ou não participar das filmagens. Consta que uma das prisões foi encenada três vezes, devido a problemas de edição.

A legalidade dessas prisões é, no mínimo, discutível: para justificar a necessidade da prisão temporária a polícia se vale da Lei n.º 7.960/89. A própria lei cuida de afirmar o caráter excepcional da medida, só podendo ser decretada a prisão quando for imprescindível para a investigação e, mesmo assim, quando se tratar de determinados crimes, por ela especificados. Atualmente, é suficiente a mera alegação de imprescindibilidade, sem necessidade de maiores comprovações, para a prisão ser decretada. É comum a acusação de formação de quadrilha, que valida a prisão, mas quase sempre é rejeitada no julgamento final da causa. O desfecho destas prisões já é amplamente conhecido: logo após as decretações, os tribunais, na expressiva maioria das vezes, cuidam de desfazer a ilegalidade. Já é tarde, contudo. A essa altura, o preso já passou pela humilhação pública e, ainda que comprove sua inocência, sua imagem de culpado, perante a sociedade, dificilmente será reparada. Como se sabe, a absolvição nunca é divulgada com a mesma intensidade da prisão.

Além disso, a utilização do grampo telefônico - outra medida prevista para ser absolutamente excepcional - passou a ser regra. Falar por telefone passou a ser atividade de risco. Sim, porque, se a conversa estiver sendo gravada, não vale o que foi dito, mas a interpretação do que foi dito. Assim, para exemplificar, entrega de documentos significa, para muitas de nossas autoridades, entrega de dinheiro. Quando ligam para o meu escritório e avisam que os documentos estão chegando, sinto-me na obrigação de explicitar quais são esses documentos, para evitar distorções. Sinal dos tempos... A prática, cada vez mais comum, é facilmente explicável: é muito mais fácil ouvir as conversas alheias e extrair a conclusão que bem se entender sobre frases de significado duplo do que investigar seriamente. É mais fácil alegar que a prisão é imprescindível do que comprovar essa condição. Prender e depois investigar é mais simples que investigar para, se necessário, prender.

Da mesma forma - e pelas mesmas razões - virou moda a decretação de buscas e apreensões em escritórios de advocacia com o objetivo de se apreender tudo o que interessar para as investigações, sem precisar o objeto da busca. A lei não autoriza isso. O Código de Processo, de 1940, admite a busca em escritório de advocacia se o advogado estiver na posse do corpo de delito (artigo 243, @ 2.º) ou se o próprio advogado for suspeito da prática de algum ilícito. Depois disso a inviolabilidade do advogado foi consagrada na Constituição federal e em lei federal. Não tenho dúvidas de que o escritório de advocacia pode sofrer procedimento de busca se o advogado for suspeito de prática criminosa. Agora, se o critério é mandar buscar porque o cliente está sendo investigado, quase todos os escritórios de advocacia passam a ser alvos constantes de buscas. Nunca fui procurado por um cliente que não estivesse sendo investigado ou na iminência de sê-lo. Convém lembrar que a devassa em escritórios de advocacia significa intranqü ilidade para a sociedade em geral, porque na busca genérica é impossível que a autoridade não tome conhecimento de outros casos, de outros nomes e de outros dados, estranhos à investigação. Sem isso a busca não se completa. Como se vê, inexiste violação maior.

O momento exige providências. A autoridade que não cumpre a lei, sob o pretexto de combater a criminalidade, é tão nociva quanto a autoridade corrupta, que também não cumpre a lei, sem que isso possa ser traduzido em comparações de ordem moral. Cabe à Ordem dos Advogados do Brasil levantar a voz e exigir punições para juízes que se retiram do papel de árbitros para se tornarem assistentes da acusação. Os advogados, como se sabe, já enfrentaram a ditadura militar, defendendo presos políticos numa época em que a garantia do habeas-corpus estava suspensa. Não se curvaram ante a ameaça de cassetetes e porões; não se curvarão, agora, ante canetas e gabinetes.