Título: Uma estrela cadente
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Um turco se encontrou um dia com um canibal. "Sois muito cruéis, pois comeis os cativos que fazeis na guerra", disse o maometano. "E o que fazeis dos vossos?", indagou o canibal. "Ah, nós os matamos, mas depois que estão mortos não os comemos." Montesquieu assim arremata a passagem, contada no livro Meus Pensamentos: "Parece-me que não há povo que não tenha sua crueldade particular." Tomemos emprestada a observação do pensador que inspirou os principais fatos políticos do século 18 para dizer que o governo do PT mais parece o maometano da historinha: execra a herança maldita que diz ter recebido, não aceita que escândalos flagrados por câmeras indiscretas tenham algo que ver com o governo - como se a parte podre não fizesse parte da fruta -, mas faz imenso esforço para abafar uma CPI - inviabilizando sua instalação -, temendo que parlamentares da oposição dilapidem a imagem de uma administração que, a esta altura, se mostra corroída por gatunos, sacripantas e quadrilhas nela incrustadas. Por que o governo Lula não quer ser investigado? Porque receia receber resultado positivo de um teste de paternidade sobre corrupção. E por temer que a esfera investigativa seja ampliada com a lupa sobre patrimônios públicos repartidos entre a afilhadagem política. Para embaralhar a opinião pública o presidente Lula manda a Polícia Federal investigar os Correios, acreditando na hipótese de que, patrocinando a causa, muda a posição do governo, de réu para acusador. A mistificação, mais uma vez, dá as cartas. O barulho de uma CPI, é sabido, ecoa forte na sociedade. Se vingar, poderemos até assistir a um espetáculo pirotécnico, com tumores e vísceras expostas. Seja como for, o governo transmite a impressão de que não quer ser passado a limpo. Engana-se, porém, quem imagina que a Polícia Federal se transformará em escudo. E a razão é óbvia: o flagrante nos Correios foi tão exuberante quanto o caso dos deputados estaduais de Rondônia, apanhados exigindo propina do governador Ivo Cassol. Portanto, a imoralidade grassa nestes tempos de governo petista. Só não se sabe a extensão das súcias. Assim, o dito recorrente do ministro José Dirceu - "este governo não rouba nem deixa roubar" - vira folclore político. Propina para Waldomiro Diniz, ex-assessor de Dirceu, flagrada. Propina para Maurício Marinho, dos Correios, documentada. Licitações viciadas, denunciadas. Empresa de amigo de Lula, apontada como favorecida. Ministro Romero Jucá, acusado. Presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, acusado. Diante da sujeira, PC Farias da época Collor até parece amador. O que mais impressiona, porém, não é a descoberta de ampla rede de corrupção, praga que assola o País desde o Descobrimento. Afinal, o DNA das 15 capitanias hereditárias em que o Brasil foi dividido, entre 1534 e 1536, por dom João III continua presente no sangue das 27 unidades federativas e da maioria dos 27 partidos políticos. Os feudos e a atual cultura fisiológica reproduzem o patrimonialismo dos tempos de colônia. O que mais impressiona é a desfaçatez com que dirigentes nos querem impor a existência de um Estado moral, ético e responsável. Como? Os nomes dos envolvidos em escândalos não foram aprovados pelo governo Lula? As licitações arrumadas, os perfis corroídos, os negócios escusos, as operações verticais - o fluxo hierárquico da gatunagem - ocorrem ou não na esfera da atual administração? Causa estranheza a solidariedade do presidente da República a dirigentes partidários envolvidos em fraudes, sem mesmo esperar a apuração das denúncias. E causa perplexidade o fato de que um extenso aparato normati vo tem sido inócuo para debelar os desmandos. Como se sabe, há leis para tapar todos os buracos. Veja-se a mais recente, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Desmoralizada em muitas prefeituras, não colocou, até hoje, ninguém na cadeia. Instrumentos anteriores nem são lembrados, a partir da Constituição. O artigo 37 reza sobre a administração pública direta e indireta nas esferas dos Poderes, pregando os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Coisa bonita de ler. O Decreto-Lei 201/67 estabelece a responsabilidade de prefeitos e vereadores. Quem se lembra dele? A Lei 8.027/90 expõe normas de conduta de servidores públicos civis. Poucos a conhecem. A Lei 8.429/92 regula as sanções aplicáveis aos agentes públicos em casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo e função na administração pública. É letra morta. E a Lei 8.730/93 trata da obrigatoriedade de declaração de bens e rendas para o exercício do cargo, enquanto outros decretos estendem as obrigações morais e éticas dos homens públicos. Há também estruturas fortes atuando contra a ilicitude, a partir da Corregedoria-Geral da União, que atua no eixo do controle interno da administração federal, enquanto o Ministério Público procura agir contra desmandos dos Poderes, fiscalizando o cumprimento das leis. E existem, ainda, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), sob responsabilidade do Poder Legislativo, instrumento sujeito a interesses partidários. Nos últimos tempos, tais sistemas têm sido atuantes e vigilantes. Por que, então, a corrupção não dá tréguas, abrigando-se com força nos domínios de um governo de quem se esperava ser o ícone da ética e da moral? Porque a cultura política brasileira contorna a rigidez do Estado legal. Há sempre uma saída, uma composição capaz de flexibilizar a aplicação da lei e a punição de condenados pela Justiça. E também porque o Judiciário não consegue ser eficaz na administração da justiça. Nessa moldura, aparece o governo do PT abrindo flancos com exóticas alianças. Partidos sôfregos, aproveitando-se da inexperiência e da inação governamental, ocupam espaços e montam esquemas. Enquanto Lula fica refém das circunstâncias, a ladroagem encontra campo para se alastrar. E começa a se enxergar um retrato vermelho-encarnado, roto antes do tempo, de um governo desarticulado na política, ineficaz na gestão, com programas-símbolo desmoralizados, fragmentado pelas querelas do PT e atingido em cheio por barganhas e denúncias. Pode ser a primeira visão de uma estrela cadente neste início de inverno austral.