Título: Na calha norte do Amazonas, nasce uma frente de devastação
Autor: Cristina Amorim, Alcinéa Cavalcante, Liége Albuque
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Vida &, p. A18

ÓBIDOS (PA) - Longe do grosso do desmatamento na Amazônia Legal, a região conhecida como calha norte do Amazonas - formada pelos Estados de Roraima e Amapá, além do norte do Amazonas e do Pará - apresenta sinais de aumento de atividades exploratórias. Ainda que nem façam sombra ao índice de derrubada registrado em outras partes do bioma, principalmente no sul da Amazônia, madeireiros, grileiros e produtores de soja começam a se instalar na área. As queimadas formam um colar de focos de calor, atingindo principalmente Roraima e Amapá - Estado que já percebeu um aumento da taxa de desmatamento, a despeito de possuir mais de 50% de seu território em unidades de conservação. Clareiras se proliferam e pontuam o que antes era um íntegro cobertor verde.

Moradores e líderes locais afirmam que a ação se intensificou nos últimos anos, sem conseguirem detalhar causas específicas. "É uma experiência empírica que deve ser levada em conta pelos governos, já que podem dar pistas de um desmatamento ainda pequeno, mas que é sentido pela população local", afirma o coordenador do laboratório de geoprocessamento do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Arnaldo Carneiro Filho.

No início do mês, a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma pesquisa em que 27 municípios da calha norte haviam se queixado do problema, no que chamou de uma espécie de "arco do desmatamento e das queimadas norte", uma referência ao já conhecido e denominado arco sul, uma faixa que se estende pelo leste e pelo sul da Amazônia.

ESCALA AMAZÔNICA

O analista ambiental do IBGE Judicael Clevelario Junior admite que o problema "ainda não é uma grande questão" quando comparada a áreas críticas, como a Terra do Meio, no sul do Pará, e Mato Grosso, que responde por quase a metade da derrubada de árvores da Amazônia. Contudo, ele acredita que existe uma nova frente na região. "É bom abrir o olho."

Já o engenheiro florestal Adalberto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), acredita ser um "equívoco" chamar a ação na área de "novo arco", pois não existe um desmatamento contínuo na região.

Quando as ações que ocorrem na região são colocadas no grande quadro amazônico, a calha norte é ainda considerada uma área pouco modificada pela ação do homem. "Na escala da Amazônia, isso não representa nem 1%. É claro que constitui uma área enorme em números absolutos, mas 80% do desmatamento do bioma se concentram em outras regiões", afirma Veríssimo.

De acordo com o secretário estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Virgílio Viana, o mapeamento do IBGE tem de ser levado em conta, mas "sem alarde", uma vez que o foco atual é o sul do Estado. "Ele tem o valor de antecipar um problema que está ocorrendo em pequena escala e temos de combater", diz o secretário. O Estado mostrou uma redução de 39% na taxa de desmatamento, de 1.734 para 1.054 quilômetros quadrados.

Manaus e outros municípios nas proximidades, como Iranduba, Manacapuru, Anamã, São Sebastião do Uatumã e Urucará, consideraram os arredores de suas cidades desmatadas. Em Rio Preto da Eva, um estudo do Inpa, coordenada pelo cientista Welton Oda, aponta uma elevação dos casos de leishmaniose - o segundo maior índice da doença no Estado. O protozoário que provoca o mal é transmitido pelos mosquitos flebotomídeos, que perdem seu hábitat com os desmatamentos.

A ação preventiva na área é tão pouco representativa para os órgãos competentes que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que há dez dias divulgou o balanço preliminar do desmatamento no período 2003-2004, não computou os dados de Roraima e Amapá. Segundo o instituto, as áreas abertas nos dois Estados não são suficientes para mudar de forma significativa os números finais, divulgados em 26.130 quilômetros quadrados.

RODOVIAS E SIDERÚRGICAS

Contudo, no Amapá as áreas desmatadas praticamente dobraram no período de 1998 a 2002, de acordo com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Em 1998, o Estado mantinha praticamente intactos 99% de sua cobertura vegetal. Em 2002, foram detectados 263 mil hectares de devastação, o que equivale a 1,84%. O desmatamento está concentrado ao longo das duas rodovias federais: a BR-156, que liga Macapá ao município de Oiapoque, no extremo norte; e a Perimetral Norte, ou BR-210, que corta de leste a oeste toda a calha norte do Amazonas. O temor da secretaria é que o problema cresça nessa mesma taxa.

Outra preocupação da pasta é a construção de siderúrgicas, que demandam grande quantidade de carvão vegetal. A Sólida Mineração, por exemplo, já anunciou para agosto a entrada em funcionamento de um forno que vai produzir 500 toneladas por dia de ferro-gusa. Engenheiros florestais, agrônomos, geólogos e ambientalistas dizem que os órgãos ambientais do Amapá não estão preparados para encarar simultaneamente os problemas decorrentes de novas siderúrgicas, empresas de agronegócios e madeireiras e da transferência das terras da União para o Estado.

Em Roraima, boa parte do corte de matas é decorrente das culturas de soja e de arroz, que têm aumentado significativamente mais ao norte, a partir de Boa Vista, onde ocorre uma "ilha" de cerrado no meio da floresta. Mas, no sul do Estado, o investimento mais intenso é dirigido ao gado - o governo estima que Roraima tenha, atualmente, um rebanho de 400 mil reses. Para a associação dos criadores, o número tende a aumentar, uma vez que o clima e a geografia plana do solo são favoráveis à criação dos animais.

EM ETAPAS

Tradicionalmente, o desmatamento tem início com a ação de madeireiros, como explica o engenheiro Alcione Carvalho Cavalcante, diretor da Associação dos Engenheiros Florestais do Amapá. "As rodovias são o fator de maior estímulo ao acesso de recursos naturais. No primeiro momento chegam os madeireiros para coletar as madeiras de maior valor, como o ipê. Logo atrás vêm os produtores rurais, que se instalam nas áreas a partir de estradas de serviços abertas pelos madeireiros e pressionam o poder público a melhorá-las, o que vai possibilitar para eles a extração de madeiras de menor valor, como cupiúba e louro."

No norte do Pará, alguns madeireiros passaram essa responsabilidade para os produtores de soja, especialmente de Mato Grosso - aos quais chamam de "sulistas" de forma generalizada, uma referência aos migrantes da Região Sul que povoaram o Estado atrás de terras para plantio.

Esses produtores começaram a testar o solo da região norte para expandir a agricultura. Um madeireiro da região de Santarém, que pediu que não fosse identificado, diz que os "sojeiros" não sabem o valor da madeira e queimam as toras indiscriminadamente, em pilhas que chegam a 50 metros.

SATÉLITES

Outros relatam que os grileiros que já agiam na calha sul do Amazonas têm aplicado uma "grilagem tecnológica" na região. Com aparelhos de posicionamento por satélite (o GPS), imagens de satélites (as mesmas usadas pelo governo e pelas organizações não-governamentais para mapear o desmatamento) e pequenos aviões, eles procuram áreas interessantes para invadir.

"Eles fazem todo tipo de pressão", afirma a presidente da Associação dos Trabalhadores Rurais de Santarém, Maria Ivete Bastos. Ameaçada de morte, ela também responde a dois processos sob acusação de pretender invadir terras de um empresário paraense - intenção que ela nega, mesmo que a área em questão, segundo ela, esteja em situação irregular.

Há algumas semanas, uma ação conjunta do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Polícia Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) foi deslocada para Óbidos, no Pará, na calha norte do Amazonas, para verificar denúncias de grilagem no assentamento Cruzeirão.

Segundo relatos de famílias do local, um grileiro havia comprado terras de assentados, além de ter expulsado algumas famílias, para reunir e desmatar 10 mil quilômetros quadrados. Quando o grupo chegou ao local, não havia ninguém nem nada: todas as árvores já haviam sido derrubadas e queimadas. O grileiro não foi localizado.