Título: Católicos separados têm nova chance
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Vida &, p. A20

É muito mais fácil e mais rápido do que se imagina anular um casamento religioso - e, assim, obter o direito de casar de novo. Os católicos divorciados e recasados estão sendo incentivados a pedir a declaração de nulidade da primeira união mediante recurso aos tribunais eclesiásticos. Não importa que tenham tido filhos ou não. As chances de obter sucesso no pedido são de nove em cada dez casos. E, depois de atendido o recurso, eles voltam a ter o direito de se confessar e comungar. "O matrimônio religioso não pode ser anulado, mas em muitos casos se reconhece que foi nulo na hora da celebração, ou seja, nunca existiu", diz o advogado Edson Luiz Sampel, juiz dos tribunais eclesiásticos da Arquidiocese de São Paulo e autor do livro Quando É Possível Decretar a Nulidade de um Matrimônio (Paulus, 1998). Dos 30 processos de primeira e segunda instância que ele, em média, examina por mês, 90% têm sentença favorável. As ações são julgadas por três juízes - dois padres e um leigo -, correm sob segredo de justiça e demoram cerca de seis meses.

Essa porcentagem de sentenças favoráveis é um pouco superior à mundial. Segundo o Anuário Estatístico da Santa Sé, chegaram a pouco mais de 82% as sentenças de reconhecimento de nulidade, na primeira instância, em 2002. De 56.236 processos julgados, 46.092 tiveram sentença afirmativa - a maioria da América do Norte, com 30.968 ações. Do total, só 2.894 tiveram sentença negativa. Houve 4.649 casos de perempção e 2.601 de renúncia, o que significa que não chegaram a ser julgados. No Brasil, os 31 tribunais de primeira instância e os 14 de segunda instância julgam cerca de 3 mil ações por ano.

"Analisamos a nulidade do matrimônio no momento da celebração, para saber se ele foi válido ou não quando os noivos, que são os ministros do sacramento, dizem o sim no altar", informa Sampel. O homem ou a mulher que entra com a ação de declaração de nulidade pode alegar uma série de razões que, conforme o Direito Canônico, tornam nula a união religiosa. Um dos argumentos mais utilizados é o da falta de maturidade, "a incapacidade de viver os ditames do matrimônio".

O leque varia da exclusão do bem da fidelidade ao erro de qualidade de pessoa, passando pela exclusão do bem da prole, exclusão do matrimônio e casamento por violência ou medo. Em todas as hipóteses, quem entra com a ação tem de apresentar provas e testemunhas, que o defensor do vínculo, figura obrigatória no tribunal, tenta derrubar para salvar a união do casal. Os juízes, que atuam sempre em colegiado, só dão uma sentença de nulidade depois de sugerir a conciliação. Se for aceita, o casamento tido como nulo deve ser convalidado, bastando para isso o consentimento do casal.

"Se a mulher comprovar que o marido sempre a traiu, ainda que no período de namoro firme ou de noivado, o casamento será considerado nulo", disse Sampel, com a ressalva de que não se trata de uma infidelidade pontual ou isolada, hipótese em que caberia apenas uma admoestação. A exclusão do bem da prole, explica o juiz, ocorre quando um dos noivos não quer ter filhos. Quanto à exclusão do bem do matrimônio, significa que para um deles não se trata de um sacramento estável, mas de contrato descartável, na base de "a gente se casa e, se não der certo, se separa".

O erro de identidade de pessoa, bastante raro, se verifica quando alguém se casa com um homem ou uma mulher pensando que é outro ou outra. Mais comum, o erro de qualidade da pessoa existe quando se descobre, após o casamento, que o marido ou a mulher não era bem aquele ou aquela que se amava na hora do sim - equívoco que pode acontecer por dolo ou por transformação. O casamento é nulo também no caso de se descobrir que o parceiro ou a parceira é homossexual e ocultou essa condição.

Os tribunais eclesiásticos de São Paulo julgam, em primeira instância, as causas da arquidiocese e de dioceses vizinhas e, em segunda, as ações das arquidioceses de São Paulo, Sorocaba, Rio, Belo Horizonte e Campo Grande. A sentença de segunda instância - obrigatória, quando a decisão de primeira instância é pela nulidade - sai em dois meses, em média.

CASOS RAROS

As causas mais difíceis são julgadas, em terceira instância, pelo Tribunal Apostólico da Sagrada Rota, em Roma. Algumas vão parar nas mãos do papa. "São casos raríssimos, como os de casamento válido, mas não consumado, que só o papa pode dissolver", observa Sampel. Isso ocorre, por exemplo, quando se prova que a mulher continua virgem ou o homem é impotente. Em 2002, só 150 ações foram levadas à Rota Romana. Eram causas complicadas, que já haviam obtido sentença negativa em um tribunal inferior.

"A declaração de nulidade é uma solução bastante freqüente para casais de segunda união que pretendem regularizar a situação e participar da vida comunitária e dos sacramentos", disse o secretário do Pontifício Conselho para a Família, d. Karl Josef Romer. Falando ao Estado, no Vaticano, ele acrescentou que "é doloroso para um pastor negar aos divorciados o acesso à eucaristia, mas a Igreja não abre mão disso, porque defende a indissolubilidade do matrimônio". A questão dos casados em segunda união, que estava na mesa do então cardeal Joseph Ratzinger, na Congregação para a Doutrina da Fé, está agora nas mãos do papa. "Como devemos nos comportar com os divorciados recasados, em particular com os que tiveram de enfrentar o divórcio e o abandono sem ter tido culpa por isso?", perguntou um padre a Bento XVI, quando ele se reuniu com o clero romano na Basílica de São João de Latrão, no dia 13. "Como podemos dizer a eles (aos divorciados) que estão em comunhão com a Igreja, se não podemos admiti-los aos sacramentos?", insistiu.

O papa Bento XVI não respondeu.