Título: Muito além das cotas
Autor: Lilia Moritz Schwarcz
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Aliás, p. J3

O Brasil é um país novato na aplicação de políticas de ação afirmativa ¿ esse expediente político-administrativo que busca, por meio da intervenção no mercado ou de incentivos no setor público e no privado, atuar sobre a desigualdade social. Se o debate intelectual sobre o tema data dos anos 70, se já em 1978 fundava-se o Movimento Negro Unificado e na década de 80 implementavam-se centros e leis ¿ como a Fundação Palmares ou a Lei Caó ¿, a questão só entraria de fato na agenda política com o governo FHC.

Foi em 20 de novembro de 1995, por ocasião do centenário de Zumbi, que se institui o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Foi, ainda, em junho de 1996 que o Ministério da Justiça promoveu o seminário Multiculturalismo e Racismo: o Papel da ¿Ação Afirmativa¿ nos Estados Democráticos Contemporâneos, com a intenção de recolher subsídios na organização de políticas públicas, para a população negra. A reunião partia do reconhecimento oficial da existência de preconceito no Brasil e era chancelada por Fernando Henrique, cuja tese de doutorado indagava exatamente sobre as relações entre capitalismo e escravidão, no Rio Grande do Sul.

No entanto, nessa ocasião, o então presidente valorizaria uma certa ambigüidade em nossa formação cultural: uma ¿criatividade para solucionar desigualdades¿. Saindo pela tangente, ele declamaria que ¿as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá¿, numa forma gauche de comentar nossa particularidade no convívio racial. Essa ambivalência permearia grande parte da atuação de seu governo: embora o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), criado em 1996, previsse políticas compensatórias, até 2001 pouco havia sido feito.

Uma certa guinada nessa história se deu em setembro de 2001, com a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, sob os auspícios da ONU. Afinal, o documento resultante da conferência recomendava ¿ diretamente ¿ a implementação de ações afirmativas.

Na seqüência, e não por acaso, o governo brasileiro definiria um programa de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrário, Justiça, Relações Exteriores), assim como a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro destinaria 40% das vagas das universidades estaduais para pretos e pardos.

Para deixar curta uma longa história, basta dizer que o governo Lula vem assumindo ainda mais diretamente esse tipo de política. O debate não se limita ao tema da reforma universitária, mas se estende à discussão sobre o ensino médio ¿ com a aprovação em março de 2004 da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Africana ou do formulário enviado pelo MEC às escolas solicitando a declaração nominal da ¿cor/raça¿ dos alunos. Sem falar da recente ¿ e conturbada ¿ publicação oficial da cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos, que condena o uso de 96 expressões consideradas pejorativas.

Não é o caso de analisar cada uma dessas iniciativas, mas antes assinalar uma nova tendência, cujo exemplo mais paradoxal foi o da Universidade de Brasília (UnB), que em 2004 mandou fotografar os vestibulandos negros como forma de garantir a comprovação da ¿veracidade da cor¿. Estamos ou não recuperando modelos do século 19, que definiam raça como um conceito biológico e associado ao fenótipo?

Isso sem esquecer do tropeção de Lula, que, no debate de 2002, quando perguntado sobre a política de cotas do PT para as universidades federais, respondeu: ¿A verdade é que você tem fórmulas científicas para determinar quem é negro, branco, pardo ou amarelo¿. Não possuímos tais fórmulas mágicas e a resposta de Lula representa o paralelo atualizado da metáfora das aves que gorjeiam de FHC. Entre a versão otimista e culturalista ¿ que tende a destacar uma originalidade essencial ¿ e a visão cientificista ¿ que define a cor enquanto tipo genético ¿, permanecemos atolados nesse lamaçal, sem notar que raça é uma construção social.

O fato é que apenas tateamos nessa seara, sobretudo quando se compara o caso brasileiro com a experiência de outros países, como os Estados Unidos, onde o termo ¿ação afirmativa¿ apareceu pela primeira vez já nos tempos de John F. Kennedy. De lá para cá muita água correu e levou à composição de pelo menos dois grupos: enquanto os defensores da ação afirmativa acreditam ver nela um remédio para aplainar desigualdades historicamente constituídas, seus adversários a entendem como um recurso que só acumula tensões e aumenta as diferenças.

O tema tem gerado uma série de livros, sendo que um dos mais recentes acaba de ser editado entre nós: Ação Afirmativa ao Redor do Mundo: um Estudo Empírico, de Thomas Sowell, pesquisador sênior de Políticas Públicas da Hoover Institution, centro filiado à Universidade de Stanford. Autor de vários livros, Sowell é um pensador conservador e influente ¿ escreve para a revista Forbes e sua coluna é publicada simultaneamente em 150 jornais. Além do mais, pertence a uma das minorias que estuda: trata-se de um pesquisador negro.

Sua tese é, portanto, ainda mais contundente. Na opinião do autor, as políticas afirmativas teriam levado à desigualdade, e não à igualdade que dizem promover. Sowell chama as políticas afirmativas de ¿mitologias políticas¿, assim como as denuncia enquanto um conjunto de ¿suposições, crenças e arrazoados¿, sem suporte empírico a sustentar sua rentabilidade.

Para se contrapor a tal experiência, lança mão dos exemplos de países como Estados Unidos, Índia, Nigéria, Sri Lanka e Malásia, a fim de demonstrar que, nessas nações, tais políticas teriam favorecido um grupo delimitado (nem sempre minoritário ou excluído) em detrimento de outros, ou provocado conflitos e guerras. Na Índia, nação que teria aplicado políticas de ação afirmativa desde os tempos coloniais ingleses, o processo propiciou a ascensão dos grupos prósperos das ¿castas da lista¿ e não privilegiou os mais pobres, como os ¿intocáveis¿. Na Malásia, teria favorecido uma maioria, contra uma minoria dinâmica, como os chineses, emigrados mais recentes. No Sri Lanka, a conseqüência seria a radicalização entre cingaleses e tâmeis e a própria guerra civil. O conflito civil da Nigéria também teria sido motivado pela tentativa de retirar de uma etnia, os hauçás, os direitos entregues a outra: os iorubas.

Por fim, nos Estados Unidos, depois de um ziguezague de decisões judiciais, a tendência teria gerado uma política de cotas e preferências temporárias, cuja decorrência, segundo Sowell, foi acirrar ódios raciais e deixar os ¿milionários negros ainda mais milionários¿.

Como se vê, na opinião de Sowell as políticas afirmativas não implicariam nem ao menos em um processo de soma zero. Ao contrário, teriam gerado polarizações, radicalismos, classificações arbitrárias, vagas não preenchidas em universidades e no mercado, queda de nível educacional e profissional e uma certa discriminação negativa contra brancos.

Mas não se iludam os leitores mais apressados. Antes de ser o último refúgio da cientificidade norte-americana, esse é um livro que guarda um argumento e o inflaciona. Se é fato que tais políticas são controversas, também é fato que Sowell carrega nas tintas. Para ele, no limite, qualquer conflito seria o resultado (imediato, previsível ou potencial) desse tipo de política.

Se a igualdade jurídica é um ganho da modernidade, e políticas compensatórias carregam o perigo de ¿descompensar¿, também é verdade que exclusões históricas (e não biológicas) merecem atenção. Como dizia no início deste artigo, ainda engatinhamos nessa questão que parece, entre nós, aquartelar-se no debate de cotas para a universidade. É certo que as políticas nacionais têm se mostrado meio apressadas, quando não desastrosas, mas isso não apaga a relevância do tema e a urgência da reflexão. O problema está justamente nas formas de enfrentamento e encontra-se dividido entre saídas mais universalistas ¿ voltadas para a melhoria do ensino médio e básico ¿ ou mais focadas ¿ que têm apostado todas as suas fichas nas cotas, que representam, diga-se de passagem, apenas uma pequena parte de uma agenda vasta e complexa.

O esforço comparativo desse livro é inegável e merece atenção. No entanto, diante da opinião implacável de Sowell, não há como esquecer do desabafo de Lima Barreto, que nos tempos da Velha República, em seu Diário Íntimo, resumiu como ninguém a lógica perversa da discriminação. ¿A capacidade mental dos negros¿, dizia ele, ¿é discutida a priori e a dos brancos a posteriori. Quando me julgo, nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo.¿ *Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros livros, de Espetáculo das Raças