Título: Entre marcha e parada, a multidão quer dar o recado
Autor: Peter Pál Pelbart
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Aliás, p. J4

Dois megaeventos disputam nesta semana a atenção dos paulistanos. Por um lado, a Marcha para Jesus, organizada pela Igreja Renascer em Cristo, reunindo cerca de 400 igrejas evangélicas. Por outro, a Parada do Orgulho GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), neste domingo. Cada um deles foi concebido de modo a atingir marca superior a 2 milhões de pessoas. Num momento de nítido refluxo político, como ler essa ocupação maciça das ruas por movimentos tão díspares? Difícil imaginar algum partido ou sindicato reunindo hoje tanta gente sem sorteio de casas ou automóveis. Claro, mais difícil é conceber dois movimentos mais antagônicos do que o das igrejas evangélicas e o das sexualidades minoritárias. Trata-se realmente de um mesmo e único fenômeno? Ou diferentes modalidades de ocupação do ¿espaço público¿ num momento ¿pós-moderno¿? Para responder a essa pergunta, poderíamos opor dois tipos de ajuntamento humano, a massa e a multidão. Numa das reflexões mais agudas sobre o fenômeno da massa, o pensador búlgaro Elias Canetti (1905-1994) elencou suas características principais. Uma massa só existe se os indivíduos nela se diluírem, perdendo sua identidade pessoal. Todos se fundem num único corpo coletivo, seguem numa mesma direção, obedecem a um único comando e respondem a um único chefe. A massa é una e homogênea. Essa é sua força, mas também sua fragilidade. Desinibida, ela ¿pode tudo¿, da devoção ao assassinato. Mas, qualquer fissura intestina, e ela se desmancha num átimo.

Em contrapartida, a multidão é plural, heterogênea. As grandes metrópoles atuais são uma demonstração viva disso: nelas se cruzam pessoas com diferentes crenças, estilos, ocupações, inteligências, sensibilidades, que se afetam mutuamente, fazem rede, se dispersam, cooperam. Não se trata de uma massa compacta e uníssona, liderada por um chefe, porém de singularidades em jogo, constituindo redes múltiplas, sem que configure nenhuma totalidade definida ¿ exatamente como na internet. Seu contorno é inapreensível, e o ¿conjunto¿ não responde a um comando unívoco. Nesse rizoma sem centro nem chefe, muitos universos se entrecruzam, várias direções coexistem, vários possíveis se criam a cada cruzamento ou conexão.

Não significa que a multidão não possa comportar-se como massa, que um cowboy ou mulá não tente ¿dar um rumo¿ a esse conjunto multifacetado, que processos microfascistas não se insinuem a cada esquina, num bando que incendeia um índio adormecido em plena rua, numa torcida enraivecida que toma de assalto um estádio. Seria preciso evocar categorias mais finas para caracterizar diversos outros ajuntamentos, como as raves, na conjunção entre música, droga e espiritualidade (tecno-xamanismo), ou outros tipos de megaconcentração na atualidade, institucionalizadas ou não. Digamos apenas, para retomar os dois pólos de aglomeração evocados, que a massa e a multidão não constituem grupos distintos, mas lógicas diferentes que podem alternar-se ou rivalizar num mesmo contingente humano, numa escala minúscula ou maiúscula. Rigorosamente falando, a multidão é o nome que se dá à multiplicidade humana no contexto biopolítico contemporâneo, sem que ela precise estar reunida nas ruas.

Num contexto mais amplo, o filósofo italiano Toni Negri insiste que, nas atuais condições materiais e políticas (pós-fordismo, trabalho imaterial e inteligência cooperativa, Império como nova estrutura flexível de comando planetário, estado de exceção generalizado), a multidão configura a subjetividade política emergente, em substituição à forma de soberania anterior. Não mais ¿o povo¿, que dominou o imaginário político pelo menos desde o século 18, com sua pretensa unidade, com seus mecanismos de delegação hierárquica, de representação piramidal, com sua ambição de tomada do poder de Estado, mas a multidão como subjetividade produtiva, como o avesso do Império.

A multidão teria vindo à tona como ¿sujeito político¿, pela primeira vez, em maio de 68. Assistiu-se ali a uma explosão polifônica, com uma pluralidade de vozes, reivindicações, sexualidades, ritmos, estilos de vida, sem que nenhuma unidade estratégica ou partidária sobredeterminasse o conjunto. Daí a dificuldade da esquerda tradicional, acostumada aos padrões unitários e aos cálculos finalistas, em acompanhar o movimento gratuito, a irreverência e até mesmo a violência ocasional. Pode-se dizer que ali se inaugurava um novo modo de ¿fazer política¿, em franco desafio ao jogo político tradicional e seu tabuleiro caduco, ou às formas militarizadas de enfrentamento e contrapoder que caracterizaram a resistência armada das décadas anteriores. Num certo sentido, as manifestações antiglobalização (ou altermundialistas) que marcaram os últimos anos, de Seattle a Porto Alegre, vêm no prolongamento ativista desse legado de 68 ¿ basta pensar na sua dimensão a um só tempo performática e combativa, reticular e comunicativa. Mais recentemente, também os movimentos de resistência à guerra no Iraque funcionaram na base de uma ressonância em rede, em que anarquistas e religiosos, gays e ecologistas manifestaram lado a lado, preservando inteiramente sua autonomia, iniciativas, diferenças, fazendo jogar essa diversidade em proveito de um ¿movimento dos movimentos¿. Igualmente, a reivindicação por zonas autônomas temporárias, numa estrutura de bando aberto, de cultura festiva alheia aos ditames de prazer e felicidade familiar impostos pela mídia, num verdadeiro nomadismo psíquico, aponta para uma nova lógica do desvio ou da recusa, do êxodo ou da resistência.

Seja como for, para voltar ao caso de nossos dois megaeventos em São Paulo, não se trata de dizer que a Marcha para Jesus segue forçosamente a lógica da massa e que a Parada do Orgulho GLBT seja a expressão maior da multidão, mas de sugerir que nosso momento ¿pós-moderno¿, nos desmanchamentos que promove, é propício para reterritorializações regressivas, com seus riscos fundamentalistas, mesmo quando travestidos por uma majestosa espetacularização planetária ¿ quem não se lembra da encenação orquestrada pelo Vaticano por ocasião da morte de João Paulo II, e a nostalgia por uma ¿monarquia absoluta transcendente¿ que dali se depreendia a cada gesto? ¿, mas também se abre para reinvenções multitudinárias do político.

A diversidade sexual está longe de ser a insurgência da multidão, mas, nas suas derivas minoritárias, pode estar a reivindicar formas de vida alternativas. Claro que o mundo gay corre o risco de constituir uma igreja a mais quando se centra por demais na sua ¿identidade¿ sexual, mimetizando a conjugalidade heterossexual, ou normatizando suas subcategorias, mas pode igualmente dar voz a processos transversais, desde que, como dizia o filósofo francês Félix Guattari (1930-1992), se procurassem ¿os pontos de passagem entre os homossexuais, os travestis, os drogados, os sadomasoquistas, as prostitutas; entre as mulheres, os homens, as crianças, os adolescentes; entre os psicóticos, os artistas, os revolucionários. Digamos, entre todas as formas de minorias sexuais, desde que se saiba que nesse domínio só se pode ser minoritário¿. Como se vê, há algo de carnavalesco, de performático, até mesmo de monstruoso, diz Negri em outro contexto, no movimento da multidão. É que é a única maneira que tem ela de opor-se ao caráter monológico do poder, de suas polícias e seus juízes ¿ sendo polifônica.

Chama a atenção, para retornar ao nosso caso, que as dimensões antes as mais ¿privadas¿, como a crença e a sexualidade, sejam convocadas a ocupar as ruas, num momento de desinvestimento do ¿político¿. A multidão na rua pode ser um sinal de que o contexto contemporâneo já não opõe blocos políticos, mas sobretudo, como diz Agamben, formas de vida.