Título: Paulista, avenida que se reinventa
Autor: Rosa Bastos
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2005, Cidades, p. C3

Hoje faz 15 anos que a Avenida Paulista foi eleita pelos paulistanos o símbolo de São Paulo. De tempos em tempos, ela se reinventa, sem nunca sair de moda. Já foi a avenida dos casarões, que a força da grana destruiu, da noite para o dia. Ergueram-se torres de concreto e vidro. Abriram-se escritórios, bancos, cinemas, lojas, galerias e institutos culturais. Durante a semana 1,5 milhão de pessoas circulam na Paulista. Por obrigação. No domingo, não chega a tanto, mas voltam. E aí, é por prazer, em outro ritmo. "Detesto andar aqui em dia útil. Todo mundo com uma pressa danada, quase passando por cima", diz Rosane Feiten, de 15 anos, que, domingo passado, passeava com seis amigas no calçadão da avenida. Modelos, elas trocaram as praias de Camboriú e Floripa pela praia do paulistano, a velha Paulista, de 114 anos.

Da esquina com a Consolação à Praça Osvaldo Cruz, nos 2.730 metros de extensão da avenida de 30 m de largura, se vê gente caminhando. Como Rafael Ramos, de 21 anos, que sai de Cotia para levar o cachorro Zion para passear com Juca, labrador dos amigos Diogo e Tiago Franco Villaboim, de 22 e 23, que moram na Paulista e têm tudo à mão. Ou o motoboy Leandro da Silva, de 20, que de segunda a sexta passa ali chispando e domingo vai só vadiar. "Ora, se é o coração da cidade?" É justamente no domingo, quando a Paulista sossega um pouco, que o mecânico Roberto Zanata, de 27, e o feirante Carlos Roberto Xavier da Silva, de 18, aproveitam para acelerar. De patins, eles pegam carona na rabeira dos ônibus pela avenida toda. Quando a fome aperta, comem o yakissoba do China, ambulante que fica perto do Masp. Zanata já machucou o ombro, mas nada grave. "Sem risco, não tem graça."

ACARAJÉ

Mas é na frente do Masp, de um lado e do outro, a maior concentração. Ali, há duas feiras, a de antiguidades, no vão livre do museu - obra de Lina Bo Bardi com cálculo estrutural do engenheiro Figueiredo Ferraz - e a de artesanato, junto do Parque Trianon. E uma profusão de coisas à venda, fora delas. Cadarço para tênis, cintos, batas indianas, carrancas, incenso, mel, coco gelado, quadros, pastel, ponchos, relógios. Até acarajé. Ruinzinho, é verdade, mas com camarão. "Precisa cuidar para não virar uma Rua 25 de Março", alerta o arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo, professor de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

O empresário Nelson Baeta Neves, presidente da Associação Paulista Viva, também se preocupa. "Não podemos deixar o símbolo maior da Paulicéia virar um mercado persa." Segundo ele, depois que as calçadas forem reformadas, a partir de julho, não serão mais permitidos ambulantes. "E a gente vai se refrescar como?", pergunta Vaneide Carvalho, de 31 anos, que vende chinelos de couro e compra sorvete nas barraquinhas.

Industriais italianos, comerciantes árabes e barões do café construíram na Paulista - o ponto mais alto da cidade - suas mansões, seguindo a arquitetura de seus países de origem. Muitos dos palacetes tinham terraços com mirantes para os Rios Tietê e Pinheiros.

Atualmente, o motoboy Leandro, que percorre a Paulista todo dia "na correria", pode escolher calmamente camisetas que o artista plástico Tito customiza e expõe num varal na grade do casarão no número 1919, um dos poucos a sobreviver à fúria dos proprietários que preferiam destruir do que ter seu imóvel tombado.

Também, pudera. O metro quadrado na Paulista está em torno de R$ 6 mil a R$ 8 mil. O terreno de 10 mil m² dos Matarazzo, um dos últimos e o mais valioso, está à venda por U$ 10 mil o m².

Essa avenida aristocrática, projetada pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, em 1890, começou a se verticalizar logo depois da 2.ª Guerra. Obras de arte como a mansão de Horácio Sabino, a primeira construção em estilo art nouveau de São Paulo, na esquina com a Rua Augusta, deram lugar a edifícios. Virou questão de prestígio os bancos fazerem a sede lá. "Nessa época, as calçadas eram impecáveis e, em setembro, pisava-se nas flores que despencavam dos ipês amarelos", diz Lima de Toledo. Hoje, entre os prédios que ocupam a Paulista, apenas 17 são residenciais. Estima-se que só 5% dos que circulam pela avenida morem lá.

A Linha Verde do metrô facilitou o acesso das pessoas, que também adoram atravessá-la de carro. São 100 mil veículos por dia, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). "É um verdadeiro fascínio que ela exerce", diz Baeta Neves.

DESCOBERTA

Quem diria, a moçada descobriu o velho Top Cine e tem lotado as sessões das duas salas para ver obras-primas de Truffaut e de Godard. O início foi quando o cinema começou a passar os filmes de Eric Rohmer, há quatro meses. Só no boca a boca, o público aumentou. "Não é o primeiro cinema que se pensa em ir", comentou a atriz Julia Ianina, de 22, após a sessão de O Homem que Amava as Mulheres, de Truffaut, que ficou um mês em cartaz. "A gente vem por causa da qualidade dos filmes antigos", disse a amiga Paula Weinfeld, de 23. Já a artista plástica Danielle Vietri, de 31, e o administrador de empresas Diogo Souto Maior, de 26, vão lá por causa do filme e da fila - ou melhor, da ausência dela. "Não dá mais para agüentar o stress de ir ao cinema em São Paulo num domingo. Aqui a gente pode chegar quase em cima da hora." Nos quatro anos em que estudou na Fundação Getúlio Vargas, Diogo ia de metrô, saía para almoçar e curtia observar o movimento. Hoje vai aos cinemas, ao Teatro do Sesi, à Fnac, ao Conjunto Nacional... "Olha, me perco na Livraria Cultura."

É outro ponto. Cerca de 1.500 pessoas circulam diariamente nas quatro lojas da livraria, que enche mais na hora do almoço e no fim de semana. À noite sempre há eventos, lançamentos, cafés filosóficos e aquela efervescência. O público da Cultura é uma parte dos que vão ao Conjunto Nacional, "cidade" com população fixa de 10 mil pessoas, entre moradores e pessoas que trabalham, e flutuante de 20 a 25 mil.

"Nosso público é cultural", diz Valkiria Iacocca, assessora de Imprensa do conjunto. Ali ficam galerias de arte, consulados, escritórios de advocacia, consultórios de médicos, dentistas e psicólogos, imobiliária e, recentemente, uma academia de ginástica, com 4.500 sócios. Valkiria acredita que essa gente, jovem e endinheirada, renovou o público do Conjunto Nacional e da Paulista.

Neste outono, as rosas do jardim do Hospital Santa Catarina estão mais bonitas do que as da Casa das Rosas, atual Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, onde há vários cursos, todos disputados. Ali perto, o Itaú Cultural, aberto em 1989, oferece gratuitamente uma ampla programação de artes visuais, literatura, dança, música, cinema e vídeo. Para entrar, basta pegar a fila.

No Espaço Cultural do Instituto Cervantes há ciclos de cinema às quintas. Uma vez por mês, há encontro com autores às quartas e recitais de música clássica às terças, além de exposições de arte. Também tudo de graça.

Freqüentada de ponta a ponta, a avenida ferve mais em alguns pontos. Depois de uma fase em que parecia ter chegado ao fim da linha, o cine Belas Artes, na esquina com a Consolação, diante do lendário bar Riviera, reabriu em maio do ano passado, com um HSBC anexado ao nome. "Não voltamos aos velhos e maravilhosos tempos, mas voltamos ao roteiro de quem quer ver bom cinema", diz André Sturm, sócio e programador. Uma vez por mês, às sextas-feiras, tem o Noitão: da meia-noite às 6 passam três filmes com intervalos. Dos cults a O Massacre da Serra Elétrica. Os sobreviventes ganham o café da manhã.

Outro lugar que renasceu é o Center 3. Depois de anos fechado por causa de um incêndio, o Center 3 foi reinaugurado em junho de 2003. Recebe cerca de 600 mil pessoas por mês em 7 cinemas e 90 lojas.

Outra grife da avenida é o Teatro Popular do Sesi, cujas montagens - excelentes e gratuitas - foram vistas por 7 milhões de pessoas em 40 anos. Mas haja paciência para enfrentar filas. Domingo, um grupo de amigos saiu do Itaim Paulista, zona leste, para ver a peça Avenida Dropsie, às 20 horas. Eles chegaram às 16 e já não havia ingressos. "Pedem para chegar uma hora antes e chegamos quatro", lamentou o auxiliar de enfermagem Anderson da Silva. "Centenas de encontros foram marcados na fila do Sesi, tão paulistana como a chuva fina, o trânsito caótico e o pastel de feira", diz o ex-presidente da Fiesp Horácio Lafer Piva.