Título: Perverso sistema de incentivos
Autor: André Franco Montoro Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Após décadas de autoritarismo e má distribuição de renda, o povo brasileiro escolheu um novo projeto de crescimento: crescimento com democracia e com justiça social. As memoráveis manifestações populares em favor das "diretas já", o movimento republicano para a destituição de um presidente e a eleição e posse de um presidente historicamente de esquerda e de oposição mostram nosso compromisso inarredável com a democracia. A proliferação de movimentos, entidades e ONGs de ação e participação social testemunham nossa opção pelo social, o que é também comprovada pelo grande aumento dos gastos sociais nos crescentes orçamentos públicos. Estaria o Brasil no bom caminho que escolheu?

Infelizmente, não. Qualquer opção é sujeita a desvios de rotas. O desvio mais comum da democracia é a demagogia. É propor e não cumprir. É simplificar questões complexas escondendo os inevitáveis conflitos de interesses. É prometer tudo sem se preocupar com as restrições financeiras. A demagogia é o câncer da democracia. Se não for extirpado em suas fases iniciais, ele pode matar o paciente.

A distorção mais comum da ação social é o assistencialismo. É dar o peixe e não ensinar a pescar. Com o assistencialismo, quem recebe a "esmola" ou o "favor" fica devendo ao doador ou a seu padrinho - e o apadrinhamento prolifera quando as instituições públicas funcionam mal. Se o sistema de saúde ou de creches funcionasse bem, não haveria espaço para padrinhos, já que não seria necessário pedir ajuda para ser atendido.

Nossas instituições, os procedimentos e a cultura político-eleitoral favorecem a demagogia assistencialista. O processo eleitoral, no Brasil, privilegia o político que promete fazer favores a seus eleitores. Como os políticos querem votos, e as regras eleitorais e o funcionamento deficiente das instituições públicas levam o eleitor a querer ou precisar de "favores", está montado o quadro para que o Brasil caminhe para a demagogia assistencialista. Com demagogia e assistencialismo não se consegue crescer.

Para reverter esta situação se torna urgente uma reforma política que altere este sistema perverso de incentivos eleitorais. Um primeiro item é a mudança no sistema de eleições proporcionais para deputado, em que cada eleitor de um Estado vota num único candidato. Como os eleitores sabem que seu voto não vai pesar muito, pois ele é apenas um entre milhões de sufrágios, e que vai eleger apenas um representante entre dezenas ou centenas, seu estímulo para votar pensando na solução de problemas nacionais é baixo. Ele é estimulado a votar num candidato mais próximo que lhe prometa fazer "favores", que podem até ser de cunho social, como uma escola ou uma ponte. Os grandes temas nacionais ele, com muita razão, acredita que não serão decididos por esse seu voto.

Este sistema de incentivos muda caso tenhamos eleições distritais, com um representante por distrito. Neste caso, o representante, por definição, tem compromissos com o distrito. A vantagem de um candidato mais próximo desaparece. Todos são próximos. Aí o eleitor vai olhar para outros predicados do candidato: sua capacidade, sua ideologia, sua experiência, etc. O incentivo para a discussão de outros temas aumenta.

Esta reforma não é suficiente. O eleitor precisa se convencer de que seu voto pode ter influência nas grandes questões nacionais ou estaduais. O eleitor sabe que seu representante será apenas um em dezenas ou centenas de deputados, e sozinho não poderá mudar o Brasil. Assim permanece forte o estímulo para concentrar a avaliação eleitoral em temas limitados ao distrito. Sozinho, o representante tem um poder limitado. Mas, se ele agir juntamente com outros deputados organizados em partidos políticos, a situação muda. Partidos fortes têm poder. Desta forma é também essencial o fortalecimento dos partidos políticos. Para tal, regras rígidas de fidelidade partidária são indispensáveis, incluindo a verticalização de alianças Um sistema distrital misto é uma forma de juntar estas duas alterações nos incentivos do processo eleitoral.

Mas isso também não é totalmente suficiente para que se tenha um sistema de incentivos que favoreça melhorias na qualidade da representação popular. O excessivo poder hoje concentrado no Executivo retira importância do Legislativo. O eleitor percebe, corretamente, que para as grandes questões o importante é o presidente ou o governador. O deputado vale para outras coisas - basicamente, obter favores.

É preciso, assim, valorizar e dar poder ao Legislativo. Para isso o melhor caminho é o parlamentarismo, regime em que é o Parlamento que elege os ministros e aprova o programa de governo. Outra medida é a mudança na sistemática de aprovação dos orçamentos públicos. Qualquer programa de governo só se viabiliza por meio do orçamento, pois é o orçamento que autoriza os gastos. A discussão e a aprovação de orçamentos são tarefas típicas do Legislativo e estão na própria origem dos Parlamentos. No Brasil, entretanto, por diversos fatores, entre os quais a superinflação que vigorou em nosso país, o orçamento oficial é quase ignorado. O Executivo faz praticamente tudo o que quer, qualquer que seja o orçamento aprovado pelo Legislativo. Isso precisa mudar. Até porque é o que determina a Constituição.

Outras reformas podem ser sugeridas, mas o básico é que, se não mudarmos o perverso sistema de incentivos que comanda nossas eleições proporcionais, não adianta reclamar da má qualidade de nossa representação popular. Nossos representantes são fruto deste sistema de incentivos. Caso não estejamos satisfeitos, é preciso lutar por uma verdadeira reforma política, que dê aos eleitores os incentivos adequados para votar com qualidade.