Título: Destrambelhamento
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/05/2005, Editoriais, p. A3

O governo tem até a meia-noite de hoje, quando termina o prazo de retirada ou acréscimo de assinaturas no pedido de abertura da CPI dos Correios, para finalmente criar juízo - em benefício dos seus próprios interesses. Desde que, na terça-feira da semana passada, o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, acusado de ser o mentor das maracutaias flagradas na empresa, anunciou da tribuna que assinaria o requerimento para a investigação - apresentado pelo PSDB sem muita esperança, sabe-se agora, de obter as adesões necessárias -, o governo mais uma vez deixou claro que ele é a sua própria e mais eficaz oposição.

Nesses oito dias, a operação abafa montada no Planalto colheu fracassos sobre fracassos, expressos no crescente apoio à criação da CPI entre os seus aliados, mais do que compensando as escassas desistências conseguidas, e na impotência da direção do PT de ordenar aos seus parlamentares que se dissociem da iniciativa - o máximo a que chegou foi "orientar" as bancadas petistas contra ela. Enquanto isso, as notícias sobre o loteamento político do IRB e de supostas tentativas de desvio de recursos na estatal contribuíram para piorar ainda mais a imagem da Presidência Lula.

Setores consideráveis de opinião passaram a acreditar que ou o governo é incompetente também no combate à corrupção ou - o que é pior e mais provável - que o seu fisiologismo exacerbado, com o fito de construir uma maioria parlamentar superior até ao que seria razoável para a sempre invocada governabilidade - na verdade, o objetivo do fisiologismo é a reeleição -, ampliou a margem potencial de corrupção na área federal. Alheio ainda à agravante de que a população não esqueceu que o PT passou a vida desfilando a sua superioridade ética em relação aos outros partidos ("tudo farinha do mesmo saco", dizia Lula), o Planalto foi a uma luta da qual não sairá vencedor, como se verá.

Começando pelo titular da Casa Civil, José Dirceu, quatro ministros com mandato parlamentar, escalados para acompanhar o presidente à Ásia, foram excluídos da comitiva para se dedicarem a persuadir os seus pares a sabotar a CPI com os argumentos de sempre: o afago e o chicote - pelo visto mais este do que aquele. Em um assomo de alienação, na mesma segunda-feira em que o requerimento recebeu 24 novas assinaturas (incluindo a de um deputado que tinha pedido para retirarem o seu primeiro autógrafo), a tropa de choque do Planalto fez saber que os 101 governistas signatários serão enquadrados na categoria "cavalo de Tróia", se não mudarem de idéia.

Lula foi ainda mais franco. No vôo para Seul, disse que "vai acabar o pão-de-ló e o cafuné para quem quiser jogar contra o governo. Essa conversa de verba, de obra, não vamos mais ter com quem não for do governo no ônus e no bônus". Os palacianos se impuseram a missão de convencer pelo menos 80 dos 101 deputados da base aliada a desistirem da CPI mista, para impedi-la de nascer. Se não conseguirem, como tudo indica, o governo se desmoralizará pela tentativa e pelo fracasso. Se conseguirem, carregará a pecha de ter chantageado o Congresso para impedi-lo de apurar um escândalo em cujo centro está um político a quem o presidente chama de "parceiro".

O Planalto parece não atinar com o que se passa. Muitos dos políticos aderem à CPI porque ela pode ser a sua rota de fuga de uma estigmatização capaz de reprová-los nas urnas de 2006. Para eles, conservar as benesses será um mau negócio se o efeito for a perda de votos. Já a sociedade não se dá por satisfeita com as ações da Polícia Federal, coreografadas para os telejornais. Não que se duvide de sua seriedade. Mas isso conta menos, no plano simbólico, do que a sigla que se tornou sinônimo de purificação e instrumento contra a impunidade. O descolamento da realidade levou o governo a apelar também para a radicalização.

Quando se esperava que a reação planaltina às infelizes palavras do ex-presidente Fernando Henrique no sábado se esgotasse na réplica do presidente do PT, José Genoino, eis que o habitualmente sereno ministro Aldo Rebelo, na ofensiva anti-CPI, deu de falar em golpismo, acusando a oposição de fomentar um "clima de 54" - o ano do suicídio de Vargas. A absurda alusão faz crer que o Planalto perdeu o senso de proporção das coisas.

Ainda bem que o PSDB parece disposto a mudar de tom, assustado com o destrambelhamento do governo.