Título: Quando a mídia é usada para um truque de mágica
Autor: Eugene Robinson
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/05/2005, Internacional, p. A14

Proponho que a mídia gaste menos de seus recursos preciosos e limitados fazendo o que estou fazendo agora: cobrindo a mídia. Não, não quero deixar todos os comentaristas de mídia sem emprego. Sim, tem dias em que a produção ou não de uma matéria (jargão que se usa para qualquer texto jornalístico) é a matéria. Mas por favor, não todo dia.

Se cobríssemos governo, economia, relações exteriores, esportes, entretenimento e o restante da vida moderna com a mesma agressividade e abrangência com que cobrimos a nós mesmos, não teríamos que nos preocupar tanto com a queda da circulação de jornais e as audiências anêmicas da televisão. E mesmo se a chamada grande mídia se revelasse um dinossauro fadado a asfixiar-se na blogosfera rarefeita de oxigênio e fatos da internet, ao menos cairíamos combatendo.

Foi um nítido truque de salão que o governo de George W. Bush realizou na semana passada, concentrando a atenção no processo de cobertura e edição de Newsweek e afastando-a de fatos mais incômodos: os abusos físicos e psicológicos muito bem documentados de prisioneiros muçulmanos; a maneira como esses abusos envenenaram corações e mentes contra os EUA nos últimos três anos; e a erupção de revoltas mortíferas no Afeganistão, um país que supostamente havíamos pacificado.

O porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan, devia estar explicando por que o governo se afastou tão depressa do ainda problemático Afeganistão para se envolver de forma confusa no Iraque; assessores de imprensa do Departamento de Estado e do Pentágono deviam estar se esforçando para tranqüilizar o mundo de que o nefasto abuso de prisioneiros no Iraque foi encerrado e os responsáveis, incluindo os de cima que se ocultaram por trás dos "desmentidos" enquanto tornavam os abusos possíveis, teriam de prestar contas.

Em vez disso, foi Newsweek que teve que se autoflagelar durante toda uma semana. Um bom truque - mas, de novo, nós da mídia fizemos o papel de assistentes do mágico.

Mágica depende de ilusão. Você faz um floreio elaborado com a mão direita para desviar a atenção, enquanto a mão esquerda empalma o ás ou destranca a porta da armadilha. É trabalho de uma imprensa livre observar a mão que o mágico quer que todos ignorem. Normalmente, nós fazemos um trabalho decente. Mas se o floreio diversionista é uma acusação a algum viés ou inépcia da mídia, nós caímos nele todas as vezes.

Mais que isso: ficamos alucinados. O que foi que Newsweek fez de errado além de usar a preguiçosa expressão "fontes disseram" em sua matéria sobre a suposta profanação do Alcorão, quando na verdade havia apenas uma fonte? Havia, afinal, uma fonte bem situada, segundo Newsweek, e foi a fonte que cometeu o erro, dizendo depois que não poderia ter certeza que viu aquele específico ato de profanação - pôr o livro sagrado na privada - citado numa reportagem específica sobre abusos contra prisioneiros. O repórter escreveu com exatidão que ouvira uma pessoa em posição de saber. É isso que os repórteres fazem.

E os tumultos mortais: "Essas manifestações não estavam, de fato, relacionadas com a matéria de Newsweek," disse o presidente afegão, Hamid Karzai, na Casa Branca, anteontem. O governo não nega que houve exemplos de abuso do Alcorão, nem nega que a unidade de detenção em Bagram, no Afeganistão - com a qual os manifestantes estavam, certamente familiarizados - foi palco de violações realmente horripilantes. Mas nós ajudamos a transformar tudo isso numa questão de processo jornalístico e de nos amarrar com nós sobre o uso de fontes anônimas.

Todos os repórteres e editores prefeririam ter uma fonte declarada a uma anônima. Mas sem fontes anônimas, nós - e vocês - estaríamos menos bem informados. Para citar apenas um exemplo, Watergate não passaria do nome de um luxuoso prédio de apartamentos de frente para o Rio Potomac.

Nenhum repórter quer ser manipulado por uma fonte que se esconde sob o manto do anonimato. Mas este é o governo mais secreto de que se tem lembrança. Se você diz coisas inconvenientes em voz alta, com seu nome anexado, sofre conseqüências. Fontes anônimas são uma necessidade.

Vamos pôr as coisas a limpo: a Casa Branca comete um erro na inteligência sobre armas de destruição em massa no Iraque, apoiando-se pesadamente em suas próprias fontes não identificadas que acabam revelando ter agendas políticas próprias, e o que se segue é uma guerra em que dezenas de milhares de iraquianos morrem.

Estou sendo vago sobre o número porque o governo se recusa a contar. Milhares de jovens americanos são mutilados e mais de 1.600 perderam suas vidas; os caixões cobertos por bandeiras voltam para casa como em guerras anteriores, mas este governo não quer que você os veja. E nós devemos pôr a culpa nos procedimentos editoriais de Newsweek? Olhem minha mão direita, senhoras e senhores. Nada em minha manga.