Título: Trocando os pés pelas mãos
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2005, Nacional, p. A6

Sem autoridade e autonomia para brigar com o inimigo real, governo briga com o PT Se existe um setor que funciona à perfeição no governo Luiz Inácio da Silva é o departamento de criação e aprofundamento de crises. Firmou-se até um padrão: a crise seguinte é sempre pior que a anterior, cuja sucessora será ainda bem pior e assim sucessivamente sob a égide da insensatez. Aprovada a CPI, normal seria o governo se organizar no Parlamento para não deixar a oposição transformá-la num palanque eleitoral, esquadrinhar a empresa sob suspeição a fim de prevenir novas surpresas, tratar de chamar às falas e aos costumes os personagens que lhe criaram constrangimentos a fim de pôr de lado o joio e mostrar-se à sociedade como trigo de boa qualidade.

Ao invés disso, o governo briga com o PT, ameaça punir quem tenta estancar a trajetória rumo às profundezas e faz pouco caso de correligionários tradicionais donos de votos e boa imagem, como o senador Eduardo Suplicy, um ser "estranho" no dizer do ministro José Dirceu.

Junto com o presidente do PT, José Genoino, Dirceu fez ameaças, alegou quebra de confiança por parte dos petistas ditos infiéis e, num rasgo de total desconexão com o mundo real, convidou-os a sair do partido.

Enquanto isso, deixou sem uma palavra de indignação, nenhum gesto de repúdio, prevalecerem as humilhantes versões do deputado Roberto Jefferson e do secretário de Governo do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, a respeito de suas andanças em busca de aliados contra a abertura de processo político para investigar o envolvimento de parlamentares no esquema de corrupção nos Correios.

Pelo visto, não causou desconforto ao ministro o relato detalhado da caça feita por ele e pelo ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, ao presidente do PTB, cujo ápice teria sido um pedido "quase de joelhos" para a retirada das assinaturas do partido de Roberto Jefferson.

José Dirceu também não reagiu e, portanto, aceitou, ao espalhafato de Garotinho dizendo ter ouvido "de um ministro" - tendo o cuidado antes de contar ter recebido telefonema de Dirceu - súplicas candentes no sentido de ajudar a barra a CPI. "Um cara-de-pau", sapecou o secretário sentenciado em primeira instância por abuso de poder econômico na eleição de sua cidade natal.

Anthony Garotinho foi assim devidamente reabilitado como interlocutor abalizado. E mais: autorizado a prosseguir no uso desse tipo de tratamento, de resto familiar para quem já apelidou o PT de "partido da boquinha".

Note-se que o PMDB, partido de Garotinho, tem nas mãos a presidência dos Correios e abriga como líder no Senado, Ney Suassuna, o senador que convenceu Roberto Jefferson a receber um lobista interessado em negócios de chantagem.

O mesmo Ney Suassuna, segundo Eduardo Suplicy, contava dia desses no Senado os meandros das tratativas fisiológicas entre o Executivo e o Legislativo.

Contra Suassuna, José Dirceu, Aldo Rebelo, José Genoino e companhia parecem não ter nada. Já Suplicy é estranho, infiel e oportunista.

Roberto Jefferson também não soa inadequado como parceiro, ainda que tenha originado todo o problema ao ser apontado pelo funcionário subornado como mandante do crime e dito, de acordo com o relato não desmentido, que "o PT empurra sujeira para debaixo de tapete, todo mundo sabe disso".

"Irresponsáveis", na visão do ministro da Educação, Tarso Genro, são os petistas que assinaram o pedido de CPI. Ficou devendo sua opinião sobre aliados que jogam lama na reputação do partido e do governo.

Nenhum dos petistas signatários da CPI impôs qualquer reparo, nem sob a forma de insinuação, à conduta moral dos correligionários com postos no governo. Trataram apenas de respeitar os fatos, mantendo-se em sintonia com a sociedade, alertando seus pares para o equívoco em marcha.

Mas estes fizeram opção preferencial por agregados cuja proximidade nada tem a ver com afinidade política, ideológica, social, doutrinária ou histórica. Jogaram aos companheiros toda a culpa, absolvendo gente cuja identidade é fundada na cobiça fisiológica e que, amanhã ou depois, pode aparecer na CPI envolvida em questionáveis transações.

A escolha não parece voluntária. Mais provável é a hipótese de que o governo briga com os seus porque não tem autoridade nem autonomia suficientes para castigar quem merece.