Título: Armadilha monetária e cambial
Autor: Alcides Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Nada errado em eleger a inflação como inimigo público número um. É, de fato, o mal maior para o assalariado, que não tem como se defender. Entretanto, quando vemos a autoridade monetária eleger esse - isto é, a inflação - como o único problema a ser enfrentado, sem dar conta dos graves problemas que estão sendo criados para a economia, aí a situação fica realmente preocupante. Coerente com sua decisão, o governo - via Banco Central - busca com todas as suas armas atingir a meta de inflação fixada em 5,1% ao ano para 2005, fazendo com que nossas taxas reais de juros sejam hoje as mais altas do mundo, com boa margem sobre a Turquia, a segunda colocada.

Como a austera política monetária fracassou até aqui - pois, apesar dos nove aumentos seguidos de taxas de juros (de 16% a 19,75% ao ano) ao longo dos últimos meses, a inflação se mantém consistentemente acima de 6% ao ano -, o dólar passou a ser utilizado como âncora adicional, na tentativa de reprimir a inflação. Com o real fortalecido (a nossa moeda foi a que mais se valorizou em relação ao dólar, ao redor do mundo, nos últimos meses), baixam-se os custos dos produtos importados, colocando menos pressão nos preços.

Felizmente, estamos, ainda, diante de um cenário benigno. Graças ao aumento em dólares dos preços de alguns produtos exportáveis e também ao momento ainda favorável de algumas das nossas principais commodities, continuamos exportando volumes consideráveis e gerando importantes superávits comerciais. Isso faz com que pareça que está tudo bem e que o dólar ao redor de R$ 2,40 não é problema para a nossa economia. Verdade essa que não se sustenta quando vemos o crescimento vertiginoso das remessas de dividendos para o exterior. Em abril saiu do País US$ 1,3 bilhão, ante pouco mais de US$ 800 milhões no mesmo período de 2004. Mas o governo não está preocupado, pois, hoje, os olhos estão exclusivamente voltados para o comportamento da inflação.

É aí que mora o perigo, colocando-nos diante de uma verdadeira armadilha monetária e cambial.

É praticamente consenso que o cenário internacional não será, nos próximos 18 meses, tão favorável quanto o foi em 2004 e no começo de 2005. Todas as previsões indicam que o mundo vai crescer menos, as taxas de juros continuarão subindo nos Estados Unidos e, conforme afirmava recentemente William Rhodes, vice-chairman do Citicorp, "parece improvável que possam continuar indefinidamente as condições atuais de liquidez recorde".

Como boa parte da valorização do real foi resultado da entrada de dólares de curto prazo para arbitrar contra nossas altíssimas taxas de juros, na medida em que o Fed Fund (a taxa básica dos juros norte-americanos) chegue aos 3,5% ao ano previstos para o final de 2005 e os títulos norte-americanos de dez anos, para cerca de 5% ao ano, os ganhos de arbitragem diminuirão.

Sabemos que a qualquer momento, no segundo semestre, o Banco Central precisará dar início à redução das nossas taxas de juros. Caso contrário, haverá explosão da dívida interna, que já está em alta por força da taxa Selic de 19,75% ao ano e da economia em desaceleração. E, com a baixa da taxa Selic, as vantagens das arbitragens efetuadas até aqui perderão, de vez, sua razão de ser, o que fará com que esses dólares de curto prazo que aqui entraram voltem aos seus países de origem. Resultado imediato dessa reversão de fluxo da moeda - saída de dólares, ao invés de entrada - será a valorização do dólar no mercado local.

Com o dólar a preços mais compatíveis com nossa realidade (algo entre R$ 2,80 e R$ 2,90), os preços dos produtos importados sofreriam pressão de alta, fazendo com que a inflação continuasse a preocupar.

Como, pois, sair dessa armadilha? Aumentar os juros novamente para que a meta de 5,1% ao ano em 2005 e, principalmente, 4,5% ao ano em 2006 seja alcançada? Se assim for feito, a economia sofrerá novo baque, pois não há como sustentar o crescimento com juros eternamente elevados.

Aprendi ao longo da minha vida profissional que as crises geram oportunidades, desde que estejamos preparados para enfrentá-las. Mas o que, infelizmente, vemos no governo Lula é pouca - ou nenhuma - preocupação com a possibilidade de mudança do cenário internacional e nenhuma ação concreta para que estejamos em condições de tirar proveito das oportunidades quando - e se - a crise vier. O ministro Palocci "reza" para que os ajustes da economia mundial "sejam feitos de forma ordenada", enquanto o ministro José Dirceu afirma que o governo continuará contratando pessoal, porque é "necessário".

Deveríamos, isso sim, para evitar que essa armadilha monetária e cambial nos crie problemas seriíssimos, fazer o dólar voltar aos poucos ao seu valor real (via intervenções do Banco Central) e cortar efetivamente os gastos do governo, para permitir que possamos reduzir paulatinamente os juros locais sem impactos negativos para a economia. Se nada for feito e continuarmos dormindo em berço esplêndido, "achando" que está tudo muito bem, o custo dessa armadilha será inflação em alta - o que o governo certamente combaterá com mais juros - e desaceleração mais acentuada da economia. Como conseqüência, nossa dívida interna atingirá níveis mais elevados, tornando-nos, de acordo com a Standard & Poor's, mais vulneráveis a choques externos.