Título: Cartilha assusta pais de deficientes e divide especialistas
Autor: Renata Cafardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2005, Vida &, p. A15

Uma cartilha do Ministério Público Federal, apoiada pelo Ministério da Educação (MEC), que determina a inclusão em escolas comuns de todas as crianças com deficiência tem provocado polêmica e evidenciado uma briga entre duas correntes de especialistas do setor. De um lado, há os que defendem o direito de todo deficiente de estudar com outras crianças e acreditam que isso levará a uma abertura da escola à diversidade, mudando a educação no País. Do outro, estão tradicionais associações que mantêm escolas especiais e afirmam que certos graus de deficiência não permitem a inclusão. Para elas, também não há preparo de professores e estrutura na rede pública de ensino para receber todos esses novos alunos. Alheios à discussão teórica, os pais se dizem assustados. "Eu tenho o direito de escolher a escola do meu filho", afirma a professora aposentada Carmem Luiza Cestari, mãe de Tales, que tem síndrome de Down e outras complicações que o impedem de falar. O menino, de 16 anos, está sendo alfabetizado em escolas da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) em Batatais, interior do Estado, onde há cerca de 15 alunos por sala. "Não quero que ele seja apenas um número na escola, quero que ele progrida", diz a mãe.

As Apaes e outras entidades oferecem ensino até a 4.ª série e depois disso organizam aulas profissionalizantes, além do atendimento com psicólogos, fonoaudiólogos e outros profissionais da área de saúde.

Karen Cristina, de 16 anos, pediu e a mãe a tirou da escola regular e a levou de volta à Apae. "A professora chegou a dizer que ela não tinha condições de estudar lá", diz a mãe, Maria Aparecida dos Santos. A menina tem dificuldade para se locomover e a escola exigia que uma irmã ficasse ao lado dela para ajudá-la. "Ela deixava de comer a merenda porque não tinha quem a levasse."

A procuradora da República Engênia Fávero, autora da cartilha do Ministério Público Federal, diz que casos como esses devem ser denunciados. O que causou maior polêmica, no entanto, foi o trecho do texto que fala que os pais estão cometendo "crime de abandono intelectual" ao não matricular os filhos com deficiência na rede pública de ensino. "Não é que vamos sair mandando prender os pais, cada caso será analisado pelos promotores. Quem teve seu filho rejeitado na escola não será penalizado."

CAPACITAÇÃO

Cerca de 60 mil cartilhas foram distribuídas para escolas do País. A intenção, segundo Eugênia, foi a de mostrar a legislação já existente sobre o assunto. "Nada é novo lá, o direito de todas as crianças à educação está na Constituição."

A secretária de Educação Especial do MEC, Claudia Dutra, diz que a inclusão é debatida há décadas e as escolas têm se preparado. Entre 1998 e 2004, cresceu de 13% para 34% o porcentual de crianças com deficiências atendidas em classes comuns. São 195 mil dos 566 mil que estudam no País.

Ela cita ainda 55 mil professores capacitados entre 2003 e 2004 com esse propósito e um programa do ministério que está formando dirigentes de 106 cidades. "O projeto de inclusão não pode mais ser adiado por entender que as escolas não estão preparadas. A formação não é apenas o treinamento prévio, é preciso matricular a criança, estabelecer a relação professor-aluno e então perceber o que é necessário para que ela aprenda", diz.

A rede pública de ensino brasileira, porém, convive com salas superlotadas, baixos salários, má formação dos professores, projetos pedagógicos ultrapassados e estrutura insuficiente. "Como você vai dar atenção a um aluno especial numa sala com 50 crianças?", questiona o presidente do sindicato dos professores de São Paulo (Apeoesp), Carlos Ramiro.

Os defensores da inclusão total acreditam que a chegada dessas crianças vai pressionar a escola a entender que a educação moderna respeita o ritmo de aprendizagem de cada aluno, seja ele deficiente ou não.

'NÃO É PARA TODOS '

A inclusão é um conceito defendido por educadores do mundo todo. Difícil encontrar quem se oponha à convivência de crianças com algum tipo de deficiência com outras de sua idade, tanto para o desenvolvimento social e educacional como para diminuir o preconceito. O presidente da Federação Nacional das Apaes, Luiz Alberto Silva, também não discorda. Diz que a instituição que preside encaminha cerca de 10 mil crianças por ano para escolas regulares, mas a inclusão não é para todos.

"Há casos graves de deficiência mental em que não se consegue saber qual é o nível de compreensão da criança", diz. "Ao forçar a barra e com uma recepção inadequada na escola, muitas deixarão de estudar", completa a vice-presidente da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), Ika Fleury.

Para a secretária, é preciso saber diferenciar a educação curricular - oferecida nas escolas comuns - da educação especializada. Dessa última fazem parte o ensino do braile, da língua brasileira de sinais ou mesmo o desenvolvimento cognitivo para deficientes mentais, o que deve continuar sendo oferecido pelas entidades, segundo ela.

Silva acusa o governo e o MPF de tentar acabar com as escolas especiais, que, segundo ele, prestam serviços essenciais para essa população. "Em municípios onde não estamos, há ainda deficientes amarrados ao pé da cama." As instituições sem fins lucrativos e ONGs se mantêm também com dinheiro do governo. Só o MEC repassou, em 2004, R$ 51 milhões em ajuda de transporte escolar, merenda e livros didáticos, entre outros.

"A escola regular é o lugar onde as gerações se encontram e se relacionam, os que têm alguma deficiência também têm esse direito", diz Claudia Werneck, fundadora da ONG Escola de Gente, que organiza projetos para jovens, empresas e outros grupos para difundir a inclusão. "Gerações e gerações de brasileiros são criadas para discriminar as pessoas em razão de suas diferenças. Isso tem de mudar."