Título: A lastimável incoerência dos homens
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

A coerência de um político o faz respeitado, independentemente de suas convicções. Anticomunista, admiro até comunistas de vida congruente. O mesmo se dava com o PT, que sempre combati, por ser não um partido dos trabalhadores, mas uma frente partidária, mistura antagônica de facções que, no dizer de Leôncio Martins Rodrigues, é uma joint venture marxista-cristã. De fato, leninistas vencidos na luta armada e católicos da linha da Teologia de Libertação, fundamentada na análise marxista, abrigaram-se sob a liderança de Lula, não comunista, fundador do PT, porque os outros partidos não eram, ao seu julgar, autênticos defensores dos trabalhadores. Os petistas diziam ter uma linha de conduta inviolável: a ética na política, de que se pretendiam monopolistas. Oposicionistas intransigentes, criticavam acerbamente qualquer indício de improbidade.

Os sucessivos governantes foram objeto de rudes ataques, que não poupavam a referência a ladrão, notadamente em comícios agressivos. Lula lembrava Robespierre na crueza das acusações e na autoproclamação de sua honestidade.

No governo tucano, as privatizações das estatais ¿ para o PT, um crime contra o patrimônio público ¿ ensejavam oportunidade para criar CPI a fim de apurar suspeitas de fraudes. ¿Só uma CPI¿, disse Lula, ¿pode esclarecer até que ponto esse governo está envolvido nesse mar de lama¿ ¿ lembrando a frase melancólica de Getúlio Vargas na dramática agonia de seu governo ao constatar ¿ honesto que sempre foi ¿ a corrupção de auxiliares diretos. Fazendo coro com ele, seu lugar-tenente José Dirceu agravava Fernando Henrique: ¿É de sua responsabilidade a obstrução às investigações que fazem seus ministros e líderes.

Melhor é fazer a CPI, senão é claro que o presidente confessa o seu medo de que a apuração da verdade revele a sua própria culpa.¿

Uma vez presidente e ministro, faz-se o mesmo que censuraram antes. Inviabilizou-se a CPI que certamente revelaria as fraudes de um certo Waldomiro, subordinado diretamente ao ministro da Casa Civil. Depois de exibido pela televisão o filme que prova a natureza velhaca do assessor direto do ministro Dirceu e que poderia ter desdobramentos indesejáveis, o corrupto flagrado foi demitido a pedido!

Agora, centenas de parlamentares surpreendentemente tomados de virtuoso zelo pela decência, indignados com o flagrante filmado do inefável Maurício Miranda, dos Correios, recebendo propina e insinuando conivência de superiores na corrupção de um órgão público que já foi exemplo de eficiência, apuseram suas assinaturas, em número muito maior que o necessário, no requerimento para criar uma CPI.

Que visava a quê? A inquirir e incriminar um ladravaz confesso. Mas, sob o inconvincente argumento de que a CPI desestabilizaria o governo, aplacou-se o zelo ético de muitas dezenas dos parlamentares signatários do requerimento. Os antigamente apelidados de ¿picaretas¿ viraram companheiros, liberando-se-lhes verbas de emendas pessoais em troca de retirarem as assinaturas do requerimento.

Foram centenas de milhões de reais empregados como persuasivo antídoto à febre de decência que os negociadores ofereceram, agindo com extrema desenvoltura, para conseguir a retirada em massa das assinaturas.

Muitos parlamentares, porém, não se deixaram seduzir pela persuasão dos emissários do governo, que haviam perdido a viagem na comitiva do presidente à Coréia e ao Japão, para exercer essa patriótica tarefa, fracassada na medida em que a penosa debandada dos sensatos arrependidos não foi o suficiente para atingir o honorável objetivo do governo. Um dos convertidos disse por telefone ¿ segundo a imprensa ¿ a um colega do Acre: ¿Retiremos as assinaturas, porque só assim o governo paga as nossas emendas.¿ Outrora se chamava a isso de chantagem de mão dupla. Mas não ficará nisso.

Todas as chicanas serão feitas para impedir saber-se quem são os ladrões do erário e a quem obedeceram. Um prestimoso deputado se permitiu recorrer à Comissão de Justiça sob a alegação (que ofende a opinião pública) de que não há ¿fato determinado¿ para justificar a CPI. Morando na Lua, não viu nem leu o diálogo filmado do desavergonhado Miranda.

Longo caminho espera a CPI, mantida pelos coerentes. Ainda virá a tentativa de negar quórum para a instalação da CPI. Ou a recusa dos líderes governistas de indicar seus componentes, o que parece não prosperar, dada a anunciada decisão do presidente do Senado de fazê-lo à revelia. Restará indicar um relator disposto a sabotar os trabalhos, à semelhança do ocorrido na finada CPI do Banestado.

Em 1994 Lula dizia: ¿Se eleito, vou ser coerente com as idéias do partido. Não vou fazer concessões.¿ Concessões foram feitas à farta, para compor a base parlamentar aliada e até para converter o execrado Maluf em aliado de Marta Suplicy na sua reeleição perdida. Petistas ¿coerentes com as idéias do partido¿ mantiveram suas assinaturas, a despeito do interesse do próprio presidente Lula, que não se poupou de instruir seus líderes, telefonando-lhes da Coréia do Sul.

A esses ¿renegados¿ o ministro Dirceu acena com drástica punição. Não sugere, anuncia. Uma forma de eliminar contestadores aprendida com Fidel.

Tudo isso para quê? Para que o presidente seja reeleito? E o Brasil ocupe uma vaga permanente no Conselho de Segurança na ONU

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação

Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado