Título: A Europa não vai acabar
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Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2005, Notas & informações, p. A3

A Constituição da União Européia (UE), rejeitada no referendo de domingo por uma robusta maioria do eleitorado francês, tem 448 artigos. Pode-se dizer, metaforicamente, que não foram menos numerosos ¿ e não muito menos contraditórios ¿ os motivos que levaram 55% dos votantes a reprovar o tratado, cujo mentor, por sinal, foi o ex-primeiro-ministro francês Valéry Giscard d¿Estaing. Pode-se arriscar também o prognóstico de que as conseqüências a longo prazo do previsto resultado adverso serão menores do que o seu impacto imediato. O que não se pode pôr em dúvida é a legitimidade da decisão. Há muito a França não vivia uma campanha tão acirrada e rica em debates. Cada um dos 41,8 milhões de eleitores recebeu pelo correio um exemplar da Carta. Oitenta por cento deles disseram ter discutido o assunto com amigos e acompanhado o confronto entre os partidários do sim (encabeçados pelo presidente Jacques Chirac e pela oposição socialista ao seu governo, com o apoio dos líderes social-democratas da Alemanha e da Espanha) e do não (defendido pela extrema esquerda, os comunistas e os neofascistas da Frente Nacional, de Jean-Marie Le Pen). E o comparecimento foi da ordem de excepcionais 70%.

O tratado é suficientemente complexo para dar argumentos a adeptos e críticos. O paradoxo é que foi concebido para simplificar as decisões em um organismo que engloba 25 países e para consolidar as suas instâncias dirigentes. Pelo Tratado de Nice, em vigor há dois anos, todos os atos importantes da UE devem ser aprovados por unanimidade, e o voto da pequena Chipre (menos de 800 mil habitantes) vale tanto quanto o da Alemanha (81 milhões). A Constituição acaba com isso. Mas, enquanto dá aos Parlamentos nacionais novos poderes de veto sobre leis aprovadas no Parlamento Europeu, institui a primazia das leis européias sobre as leis nacionais e expande os poderes do Conselho Europeu, o governo da UE.

A Constituição adota uma Carta de Direitos avançada no plano social, mas diminui os controles estatais sobre a economia, favorecendo a competição e o empreendedorismo, o que polarizou a França. Antes dela, nove países já haviam ratificado o documento. Eles somam 220 milhões de habitantes, ou 49% da população da UE, da ordem de 450 milhões. Já a França, genitora da integração européia, juntamente com a Alemanha, tomou pela primeira vez uma decisão contrária ao seu aprofundamento em boa medida porque parcela dominante do seu eleitorado como que seguiu o conselho americano de ¿pensar globalmente e agir localmente¿.

A ação local consistiu em votar não em protesto contra a deterioração da economia e do emprego sob o governo Chirac. Com o PIB em baixa e o desemprego em alta, não espanta que a questão econômica tenha sido a mais invocada pelos partidários do não ao explicar o seu voto. Sobretudo os pobres, os jovens e os moradores das áreas rurais receiam que a Constituição ou venha a colocar em xeque o invejável Estado de Bem-Estar Social francês (argumento da esquerda radical e dos comunistas) ou venha a escancarar o mercado de trabalho aos imigrantes do Leste ¿ o ¿encanador polonês¿ que cobrará uma fração do que se paga no país pelo serviço ¿ ou, ainda, venha a minimizar a influência da França na Europa (argumento da extrema direita).

Houve quem afirmasse que o referendo derrotou algo mais do que a Constituição, ou seja, a própria idéia de uma Europa unida, defendida pelas elites políticas, intelectuais e midiáticas mais avançadas do Velho Mundo. A avaliação pessimista é bombástica, mas não parece correta. Derrotados mesmo foram o governo Chirac e o aparato do Partido Socialista. O projeto europeu já conheceu outros percalços e nem por isso deixou de avançar. Teria regredido, isso sim, se o Tratado de Maastricht, de 1992, que instituiu o euro, tivesse sido repelido pelos franceses (passou por 51% a 49%, também numa época de descontentamento político).

Certamente o ritmo e o alcance da unificação européia serão prejudicados: o calendário da expansão da UE decerto será revisto. E os líderes europeus terão de discutir e escolher um entre os diversos caminhos possíveis para superar o impasse criado pelo voto do povo francês. Enquanto isso, como disse ao Estado o ex-primeiro-ministro italiano Massimo D¿Alema, apesar do grande fracasso político, ¿as instituições européias continuarão no mesmo lugar. Não será o fim do mundo¿.