Título: 'Quebrar patentes não é solução a longo prazo'
Autor: Aureliano Biancarelli
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2005, Vida &, p. A17

"A decisão do Brasil de quebrar a patente dos medicamentos para a aids pode resolver o problema dos seus pacientes por dois anos, no máximo. Depois disso, o vírus continuará lá e os remédios não estarão mais lá." A afirmação é de John Leonard, segundo homem do laboratório Abbott e seu principal pesquisador na área de aids. Casado com uma brasileira e pai de um filho brasileiro, Leonard, de 47 anos, pesquisa o HIV desde 1981, quando surgiram os primeiros os casos da doença. Com um faturamento de US$ 19,7 bilhões no ano passado, o Abbott é fabricante do Kaletra, um dos três anti-retrovirais do coquetel protegidos pela lei de patentes. Segundo o Programa Nacional de Aids, as três drogas representam 70% dos R$ 900 milhões que o Brasil está gastando este ano com a doença. A quebra das patentes e a produção delas como genéricos no País permitiriam uma economia de R$ 200 milhões anuais.

Como o senhor vê uma possível quebra de patentes dos medicamentos para a aids pelo Brasil?

Mesmo entendendo que essa decisão é por uma boa causa, trata-se apenas de uma solução de curto prazo. Posso garantir que as drogas que hoje estão em uso, e que o Brasil fabricará se quebrar a patente, não serão mais eficazes num futuro próximo. E não haverá mais ninguém trabalhando em drogas para o futuro. Quebrar patentes não é uma solução viável a longo prazo. Vai resolver um problema econômico, de saúde para os pacientes, mas por dois anos, no máximo. Depois disso o vírus continuará lá e os remédios não estarão mais lá. Por isso vejo a quebra de patentes como um tropeço. Até agora, os laboratórios vêm fazendo sua parte, investindo e pesquisando a doença. Temos condições científicas e tecnológicas de continuarmos esse avanço, melhorando a saúde das pessoas, mesmo que a aids não tenha cura. Mas se mais e mais países não pagarem pelos medicamentos, no futuro não haverá mais tantas novas pesquisas.

A decisão brasileira de copiar e produzir os medicamentos pode levar a uma interrupção das pesquisas pela Abbott? E a produção do Kaletra no Brasil, anunciada para 2006, pode ser cancelada?

Vamos tratar cada situação separadamente, mas posso dizer que a quebra de patentes trará graves conseqüências para todos. E todos teremos de assumir as escolhas que fizermos, laboratórios e países, com conseqüências para os pacientes, médicos, hospitais, etc. Mas a Abbott não tem uma decisão preestabelecida, vamos avaliar cada fato e ainda esperamos que o Brasil reveja sua posição. Por ora, todos os projetos que tínhamos, da produção do Kaletra no Brasil às novas pesquisas em aids, estão em compasso de espera.

Mas e se pessoas e países não tiverem condições de comprar?

Terá de haver uma solução de meio termo, porque a aids não é responsabilidade só dos laboratórios. Como afeta a todos, exige a participação de todos: indústria, países, organizações, escolas, hospitais, pacientes, familiares. Um laboratório não é um país. Ele pesquisa, produz e vende. Faz remédios por razões diversas, mas tem de haver viabilidade econômica.

O Brasil alega que sem a quebra de patentes, ou grande redução no preço do Kaletra, o programa de acesso aos remédios terá de ser interrompido. A Abbott já fez tudo o que podia?

Já fez. O Brasil paga pelo Kaletra o menor preço entre todos os países fora da África. Equivale ao preço de custo, cerca da metade do valor cobrado na Europa e EUA.

Como se sente pesquisando drogas que poderiam salvar milhares de vidas, mas que não estão porque países e pacientes não podem pagar por elas?

Não me sinto nada bem. Mas devolvo a pergunta a você e a todos os outros profissionais. Como você se sente escrevendo artigos sabendo que muitos não têm acesso a jornais? Vocês querem dizer que a responsabilidade de um pesquisador é maior, mas esta é uma forma de minimizar o problema. É fácil responsabilizar um laboratório, dizer que está ganhando muito dinheiro com a doença dos outros. Esse é um discurso que pega bem, mas na verdade a aids é um problema de todos. É como a fome - ela é também um problema de todos, mas ninguém fica dizendo que o McDonald's deveria enviar cheeseburgers à Tanzânia.