Título: Ao PT, com paixão e escárnio
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

O estardalhaço da anunciada derrota do governo na tentativa de impedir a instalação da CPI para investigar o escândalo da corrupção nos Correios evitou que fosse dada a devida atenção a dois recentes gestos da cúpula federal. Ao anunciar que desistia de devolver os cargos de confiança que mantém na máquina pública e retirava a assinatura do requerimento de instalação da CPI (em mais uma amostra de que há políticos cuja palavra não vale sequer quando inscrita sobre a própria assinatura), o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, tentando valorizar dramaticamente o gesto, cometeu uma inconfidência. Disse ele que só recebeu a visita do chefe da Casa Civil, José Dirceu, e do ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo (PC do B-SP), por descuido da empregada, que os deixou entrar enquanto tomava banho. E duas tentativas anteriores tinham, conforme contou, malogrado. Além de o pânico do governo se evidenciar na inesperada dupla formada por dois notórios desafetos (enfim, juntos), o episódio ganhou relevância pela ênfase do petebista ao fato de os dois dignitários do primeiríssimo escalão se terem "quase" ajoelhado a seus pés para fazê-lo voltar atrás das decisões tomadas anteriormente para reforçar a impressão de inocência que ele queria transmitir à opinião pública.

Não é de todo improvável que Roberto Jefferson tenha mentido. Como pode ter mentido também em outubro passado ao contar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe prometera passar um "cheque em branco" por ter ele "atravessado o oceano sozinho". Seja qual for a importância dessa "travessia" (que nada tem que ver, é claro, com a canção de Milton Nascimento e Fernando Brandt), o certo é que, se o petebista mentiu, não fica bem o presidente da República se solidarizar com ele, como o fez em encontro com líderes das bancadas governistas, dirigindo-se ao dublê de prócer trabalhista e representante de usineiros de açúcar de Pernambuco José Múcio Monteiro. Aliás, não caberia ao magistrado número um da Nação proteger aliado nenhum, como lembrou o filósofo, Roberto Romano, insuspeito de ser "elitista".

Mentirosa ou verdadeira, a bravata de Jefferson tem claramente o objetivo de alterar a natureza das relações da tropa de choque petebista com a patota petista. Isso ficou bem claro na comparação que ele fez de tal conúbio com o trato não cumprido pelo escorpião com o sapo, na célebre fábula em que o primeiro ferroa e mata o segundo, afogando-se com a vítima apenas para não trair a própria natureza. Trata-se de uma tática a que ele costuma recorrer com êxito sempre repetido. E que também usa para se livrar das frias em que é posto por protegidos. Afinal, "bravata" foi a palavra usada por Maurício Marinho para justificar a citação do nome do presidente do PTB na gravação em que pedia a um empresário propina de R$ 3 mil para favorecer os interesses deste nos Correios.

Resta (por que não?) a hipótese de a bravata de Jefferson expressar a verdade. Afinal, no dia seguinte ao de sua divulgação, este jornal publicou declarações do chefão do PMDB fluminense, Anthony Garotinho, contando que os mesmos generais da guerra perdida da tal operação abafa "imploraram" para que convencesse 39 liderados por ele a retirarem suas assinaturas do requerimento indesejável. Esse empenho todo em evitar o inevitável cerca o malogro governista de suspeitas, bem definidas pelo deputado tucano mineiro Roberto Brandt, ex-ministro de FHC e irmão de Fernando, o genial letrista da citada Travessia, a respeito da CPI em questão: "Nós não sabemos o que vamos achar, mas eles devem saber muito bem o que tentam esconder."

Entre achados e perdidos, restam algumas evidências incômodas na indispensável reflexão sobre o momentoso episódio. O PT das CPIs apelou a tudo para evitar a CPI contra o PTB, embora Lula tenha escarnecido de quem imaginasse que ele estaria preocupado com ela e José Dirceu jurasse que o secretário-geral do PT, Silvinho Pereira, e o tesoureiro do partido, Delúbio Soares, não seriam alcançados pela eventual devassa. Até o controlador-geral da União, Waldir Pires, foi exumado de merecido ostracismo para clamar contra "o golpe capaz de desestabilizar nossa democracia". Mesmo tendo esta empossado o vice Sarney no impedimento de Tancredo, fazendo malograr eventuais tentativas de golpe; impedido o primeiro presidente eleito diretamente de prosseguir até o fim do mandato por causa das evidências de corrupção na gestão; e ungido um operário de esquerda pela primeira vez na História para comandar nossa República.

O arrogante José Dirceu chegou aos extremos da humilhação para convencer Jefferson e Garotinho a renegarem as assinaturas empenhadas. Há pouco ele já molhara de lágrimas a lapela do tirano cubano Fidel Castro por amor à revolução que erigiu as masmorras do socialismo real. Agora, dois políticos que estão longe de ser apontados como campeões da moralidade na gestão da coisa pública - casos de Jefferson e Garotinho, que acaba de ser condenado por clientelismo explícito por uma juíza eleitoral em sua base de Campos (RJ) - garantem ter ele "quase" ficado de joelhos e "implorado" para obter deles o que pretendia. Então, entre a utopia revolucionária e a oferta de "boquinhas" do Estado real balança o coração dos petistas no governo.

A paixão pelo poder que ele e seus companheiros exibem é tal que chega a lembrar o título da novela de J. D. Salinger To Esmé, with Love and Squalor (A Esmé, com Amor e Sordidez). Só que o pântano político moral em que estes atuam nada tem que ver com o contexto em que brilha aquela protagonista da melhor ficção americana.