Título: Ética da mão pesada
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/06/2005, Editoriais, p. A3

O mero fato de o PT considerar a possibilidade de apoiar a candidatura ao Senado do ex-governador peemedebista Orestes Quércia, em detrimento do companheiro Eduardo Suplicy, aspirante natural à reeleição, vale por um tratado sobre a degradação do partido que passou as suas duas décadas e meia de existência se outorgando o monopólio da ética política. É legítimo uma agremiação ceder a outra as vagas que de outro modo seriam suas nas disputas para o Senado ou governos estaduais, em troca da adesão da sigla beneficiada ao seu candidato presidencial - e nada mais escancarado do que o empenho do presidente Lula em atrair o PMDB para a coligação reeleitoral de 2006.

O problema, evidentemente, são os nomes citados no arranjo a que o Planalto aspira. O contraste entre a imagem pública, para dizer o menos, de cada um deles torna literalmente clamorosa a simples admissão da eventualidade. A hipótese da troca de Suplicy por Quércia, segundo "um dirigente do PT paulista" ouvido pelo jornal Valor, era considerada remota. Mas isso foi antes da criação da CPI dos Correios, que fez o ministro da Casa Civil, José Dirceu, ameaçar com o banimento os 14 deputados petistas que se recusaram a retirar as assinaturas do pedido de abertura da investigação parlamentar - e fez o líder do partido no Senado, Delcídio Amaral, chamar de "traidor" o signatário Suplicy.

Eles que são petistas que se entendam, mas não há como fugir de uma indagação: o que foi exatamente que o senador traiu ao anunciar da tribuna, às 20 horas do dia D da CPI, que decidira, depois de dilacerantes dilemas de consciência, assinar o requerimento? Foi o compromisso, assumido com outros 5 dos 13 membros da bancada, de esperar até pouco antes da meia-noite, prazo fatal para adesões e desistências, antes de tomar uma decisão. Se a CPI ainda pudesse ser enterrada, eles não a apoiariam. Se, no entanto, ficasse claro que ela se tornara irreversível, nesse caso assinariam o pedido. Se essa não é uma atitude de cínico oportunismo, tais palavras perderam o sentido.

Perto disso, o oportunismo de que Suplicy é acusado - e que é evidente - não passaria de um pecado venial. Os motivos que o teriam levado a cometê-lo são uma questão de foro íntimo do senador que Dirceu, como quem enuncia uma circunstância atenuante, classificou na TV de "estranho" - ao que se poderia acrescentar que, estranho ou não, nunca o senador petista foi visto rasgando votos. De todo modo, o estranhamento entre Suplicy e os colegas que se consideram decepcionados com a sua conduta põe em relevo duas questões substantivas que se entrelaçam. A primeira é o apoio de 86% dos brasileiros, segundo pesquisa da CNT-Census divulgada ontem, à apuração parlamentar da corrupção flagrada nos Correios.

Se a opinião pública estivesse de acordo com a alegação oficial de que todas as providências foram tomadas de imediato para deslindar o escândalo e que a CPI, além de supérflua, é um golpe político para desestabilizar uma administração notavelmente bem-sucedida, oportunismo seria juntar-se ao coro estridente dos denunciantes da conspiração em marcha. A segunda questão é a de que, acuados - não por uma imaginária trama das elites, mas pela crescente descrença nos seus proclamados predicados éticos -, o PT e o governo respondem com os instrumentos típicos dos autoritários: a execração dos companheiros que por uma razão ou outra endossaram a proposta de criação da CPI.

Eles não estavam proibidos de fazê-lo. O partido havia apenas recomendado a retirada das assinaturas, não por tolerância com a divergência, mas por reveladora falta de poder de fogo para aprovar a resolução proibitiva que a sua direção desejava. Ainda assim, ameaçam-se os deputados de suspensão ou mesmo expulsão do PT - não agora, o que seria um suicídio político, mas no encontro nacional da agremiação, em dezembro. Na televisão, na semana passada, Dirceu defendeu a saída dos parlamentares. Recebeu do senador Cristovam Buarque - que não assinou a CPI - o troco de ouvir que a medida era "stalinista".

Na mesma linha, o "centralismo democrático" exibido pelo ministro levou o sociólogo Francisco de Oliveira, que se desligou da legenda da qual foi um dos fundadores, a dizer que "o PT está cada vez mais parecido com o Partidão" (o antigo PCB). Em suma, é isso: pela reeleição, se não for por coisa pior, vale tudo.