Título: Não atirem no presidente!
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

O cidadão estaciona na porta do Palácio.

"Não pare aqui!" adverte

o policial. "Esta é a passagem das nossas autoridades."

"Foi bom avisar, seu guarda. Eu vou trancar o carro..."

Segundo pesquisa da CNT/Sensus, para os brasileiros a corrupção é o principal motivo para não ter orgulho do Brasil. Não deixa de ser um fato positivo a constatação de que a opinião pública agora se incomoda com esse problema. A inflação, por exemplo, só pôde ser debelada depois que se formou um consenso nacional de repúdio a ela. A corrupção, entre nós, só descerá a patamares civilizados quando a sociedade, como um todo, passar a abominá-la e tratar de banir de seu convívio aqueles que a praticam. A nossa cultura, infelizmente, ainda incensa a figura do "esperto", do "malandro" e daquele que enriqueceu porque "se deu bem" na vida pública. O opróbrio popular só atinge aqueles que são flagrados em ação, o que demonstra que o vergonhoso não é o ato de roubar, mas, sim, o de ser incauto a ponto de ser apanhado roubando.

Em mais de 20 anos de política, jamais me vangloriei de ser honesto. Honestidade não é dom nem virtude. Não se trata de um atributo que distinga uma pessoa das demais. Honestidade é regra, não exceção. Ninguém tem de se orgulhar por ser honesto. Tem, isso sim, de se envergonhar quando deixa de sê-lo.

Vamos deixar a indignação moral de lado. Até porque, em matéria de honestidade e castidade, aqueles que mais se valem da pregação moralista muitas vezes são os primeiros a pecar quando a oportunidade lhes aparece. A corrupção é uma doença social. E só será debelada quando a sociedade começar a entendê-la como tal.

Não por coincidência, o mapa da corrupção, no mundo, é em muito semelhante ao do atraso social e econômico. As nações mais amadurecidas são justamente as que apresentam maior grau de transparência. Corrupção é coisa de país subdesenvolvido. Ou de país onde a prosperidade é tão recente que não deu tempo para a sociedade se amoldar a ela.

Todos são capazes de tudo quando ninguém tem nada a perder. Uma vez enriquecida, a sociedade trata, ela mesma, de estabelecer regras e padrões de conduta para se defender dos oportunistas e aproveitadores. A coerção social, nesses casos, é mais eficiente que a sanção penal.

Já há algum tempo as principais correntes do pensamento econômico têm deixado de lado a matemática para se fixar nos usos e costumes que propiciam a afluência social. A esse conjunto de valores e práticas se dá o nome genérico de instituições. As instituições tanto podem ser formais - tais como legislação, organizações civis, estruturas do Estado - como informais, que são as convicções consensualmente aceitas pela sociedade.

O capitalismo, ao contrário do que dizem os marxistas, não é o sistema em que impera a exploração desenfreada do homem pelo homem. Ele só funciona, de fato, dentro de uma moldura de ética e confiança social. Se as pessoas não vêem fortes razões para confiar umas nas outras, qualquer empreendimento está fadado ao fracasso. A base do sistema capitalista é o crédito. Crédito em sentido amplo. Os agentes econômicos, que somos todos nós, ao interagir no mercado, têm de forçosamente acreditar que os demais vão agir com lisura e cumprir fielmente os seus compromissos. Boa-fé não é sinônimo de ingenuidade. É, isso sim, um imperativo sem o qual nenhuma transação econômica pode ser levada a cabo. Nas sociedades atrasadas, onde não existe crédito ou confiança, todos os pagamentos têm de ser à vista e, mesmo assim, nem o comprador tem garantias da qualidade do que adquiriu, nem o vendedor tem certeza de que o dinheiro que recebeu não é falso. Ninguém se associa a ninguém, pois todos temem ser logrados pelos parceiros. Não é preciso dizer que sociedades assim estão condenadas eternamente à pobreza e ao subdesenvolvimento.

Já nas sociedades avançadas se dá o contrário. Muitos brasileiros, quando vão aos EUA, por exemplo, não conseguem compreender por que ali a palavra de um homem vale mais que qualquer garantia material. Seriam os americanos todos uns otários? Seria o caso de perguntar: se são todos otários, por que será que estão cada vez mais ricos?

A resposta é simples. Os norte-americanos confiam uns nos outros porque todos têm consciência de que o preço a pagar pela transgressão é demasiadamente alto. A Justiça é rápida e eficiente e a coerção social, implacável. Salvo por motivos de força maior, um cidadão que não cumpre os seus compromissos é automaticamente excluído do convívio social. Perde o prestígio e o respeito dos demais. Seus próprios vizinhos passam a evitá-lo. O custo da má-fé e da "malandragem" é nada menos do que a exclusão social.

Em sociedades assim intransigentes, a lisura e a transparência dos agentes públicos são uma conseqüência natural.

Vale lembrar que, no exemplo dos EUA, nem sempre foi assim. Até o final do século 19 existia por lá um sistema de loteamento de cargos públicos muito semelhante ao atual no Brasil. Somente depois de 1881, quando o presidente James Garfield foi assassinado por um correligionário que não fora aquinhoado com um posto no governo, é que a sociedade resolveu dar um basta. Criou-se o movimento "go-go" (good government), que levantou a opinião pública e obrigou a administração pública a adotar padrões éticos condizentes com os da sociedade.

Não, não é uma boa idéia assassinar o Lula só para reproduzir, por aqui, um movimento semelhante. Mas, do jeito que vão as coisas, não custa nada ele se prevenir...