Título: Os dois lados de Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Editoriais, p. A3

O presidente da República merece irrestritos elogios pela sua primeira manifestação sobre o estado da economia depois da divulgação dos dados mais recentes sobre a evolução do PIB nacional. Mas preocupam cada vez mais, de outra parte, os indícios de que ele não consegue perceber com clareza - ou, como o cego do ditado, não quer ver - a anomia política instalada no seu governo que a crise da CPI dos Correios só tem feito acentuar. É uma questão em aberto saber se e quando o Lula lúcido e o Lula alheio se encontrarão. O primeiro deu uma aula de responsabilidade ao reiterar - numa fala em que exibiu serenidade e autoconfiança - que dele não se deve esperar "nenhuma medida populista (em matéria de política econômica) porque vai ter eleição daqui a um ano e meio". Garantiu: "Vamos fazer tudo que tivermos de fazer, independentemente do calendário eleitoral. Este país não vai retroceder." Populismo, naturalmente, seria repetir o que neste país tanto se fez: gastança e inflação em nome de um crescimento fadado a definhar logo adiante por falta de bases sólidas.

Ele apostou alto ao dizer que "este ano a gente vai surpreender outra vez" no desempenho da economia. Não que a profecia seja despropositada - os últimos indicadores do setor, por exemplo, são auspiciosos. Em abril, o nível de atividade na indústria paulista, considerados os fatores sazonais, subiu 2,2% em relação a março; o número mais expressivo do ano. Em maio, bateram novos recordes não só as exportações, mas também as importações, um sinal inequívoco da confiança dos empresários na sustentação do aquecimento.

Mas, caso se confirmem as previsões menos otimistas sobre o PIB de 2005, o presidente terá dado um poderoso argumento para os que o criticam pelo triunfalismo que o leva a alardear êxitos fictícios ou projetos irrealistas, do Fome Zero ao Primeiro Emprego. O essencial, em todo caso, é que a sua recusa ao populismo exprime a convicção de que o seu êxito eleitoral está vinculado à evolução da economia - e esta, ao prosseguimento de uma política econômica racional. Antes ele tivesse o mesmo descortino em relação à política.

Nesse plano, porém, prevalece o contrário. Por isso, desde que os resultados das eleições municipais apontaram a necessidade de uma recomposição do governo, para reduzir o espaço desproporcional nele ocupado pelo PT, o que o presidente não conseguiu consumar, até o êxito do pedido da CPI dos Correios, o que os seus operadores não conseguiram evitar, o Planalto acumula fracassos em profusão (dispensável mencionar a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara).

A indisfarçável brigalhada entre os petistas tem muito que ver com isso - daí porque 47% dos entrevistados na pesquisa de maio da CNT/Sensus reprovaram a condução política do governo. O último exemplo do bate cabeça entre os companheiros foi a intempestiva idéia do ministro Luiz Gushiken, da Comunicação de Governo, do pedido de demissão coletiva do Gabinete a fim de deixar o presidente à vontade para reformá-lo. A sugestão foi derrubada incontinenti pelos colegas Antonio Palocci, da Fazenda, e José Dirceu, da Casa Civil.

Outra parte do problema está nos efeitos do loteamento de cargos pelos partidos aliados, o que há pouco levou o presidente do PT, José Genoino, a falar, temerariamente, em "requalificar" a base governista no Congresso. Mas por tudo perpassa a inaptidão política do presidente. Ele simplesmente não tem paciência para a matéria: ora ouve e não registra, ora se fecha em copas; ora é afável, ora é ríspido com os seus próximos. Com os profissionais dos outros partidos, ele se comporta como se achasse que tapinhas nas costas, analogias futebolísticas e riso solto curam qualquer desavença.

Difícil dizer o que é pior: a sua imensa relutância em tomar decisões ou a sua dificuldade de ter uma visão de corpo inteiro de um quadro político complicado, para dizer o menos, do que a sua reconhecida intuição não dá conta. A sua conduta no caso da CPI chega a ser enigmática. Perplexos, os políticos se queixam de não saber o que ele pensa da operação destinada a impedir que se instale, em contraste com a ansiosa movimentação nesse sentido dos líderes petistas. A terceiros, Lula transmite despreocupação, até desinteresse pelo tema. Será por ignorar o que os petistas conhecem bem demais?