Título: Fé não é direito
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Editoriais, p. A3

Não é de se exigir que um jurista perca suas convicções religiosas no momento em que deve interpretar uma norma jurídica. O que não se pode admitir é que essa interpretação se fundamente, inteiramente, em convicções religiosas. Se isso vale para os que têm por ofício elucidar o que esteja contido no direito positivo, na legislação, por meio da exposição do que lhe pareça a melhor doutrina - e os pareceres dos jurisconsultos têm seu devido peso nas decisões judiciais -, valerá mais ainda para os que têm a função oficial de defender os interesses difusos da sociedade, como é o caso dos integrantes do Ministério Público, notadamente o responsável maior pelo MP federal, o procurador-geral da República. O fundamento que levou o procurador-geral Cláudio Fonteles a ajuizar, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra dispositivo da Lei de Biossegurança que permite a utilização de células-tronco de embriões humanos com finalidades de pesquisa ou terapia só pode ser o da doutrina católica, religião da qual o procurador-geral da República se confessa fervoroso praticante. A propósito, sempre é bom lembrar que foi, justamente, a República, em sua primeira Constituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que eliminou, no Brasil, a união Igreja-Estado e estabeleceu a plena liberdade de culto em nosso país. Dessa forma, quando uma autoridade pública representa a sociedade brasileira, ou fala em seu nome, há que levar em conta que atua em esfera eminentemente civil, laica, sendo-lhe descabido, nessa função, qualquer laivo de proselitismo religioso. Caso contrário, o direito positivo pátrio e as instituições por ele normatizadas estariam na inteira dependência dos poderes temporários exercidos por adeptos desta ou aquela crença.

É sabido que, para a Igreja Católica, a vida humana se inicia no momento da concepção. No direito positivo brasileiro, no entanto, apesar de proteções jurídicas em favor dos nascituros, a pessoa física - com todo o seu amplo espectro de direitos, inclusive o sucessório - só surge em razão do nascimento com vida. São visões diversas, que vão se refletir em questões de grande interesse científico e social, como o do aproveitamento de células-tronco - no caso em pauta, de embriões que sobraram de tratamentos de fertilidade, não foram implantados em útero e não teriam chance alguma de gerar nascimento de um ser humano.

Por outro lado, no capítulo da valorização da vida humana - o que, decerto, está na raiz de tantas concepções éticas e doutrinas religiosas -, há que se reconhecer a importância do avanço das ciências médicas, destinadas a aumentar a duração e a qualidade de vida dos seres humanos, por novos meios oferecidos pelas pesquisas científicas, sistemas de tratamento de doenças e aperfeiçoamento de tecnologias em diversas áreas. Não se pode, simplesmente, obstar este avanço - que significaria o aumento das possibilidades de sobrevivência para milhares ou milhões de pessoas - a partir de uma visão confessional particularista, que não leva em conta os reais interesses, em termos de saúde, de superação de doenças e de extensão da vida, de toda uma coletividade.

Que a questão é polêmica e pode suscitar interpretações disparatadas, não resta a menor dúvida. Mas antes de o procurador-geral da Republica tentar impor filigranas interpretativas para barrar possibilidades de melhoria da saúde das pessoas, seria bom procurar saber o que acha a sociedade brasileira a esse respeito. Afinal de contas, existe uma lei aprovada pelos representantes legítimos da sociedade - ou seja, a Lei de Biossegurança. Se ela é ou não inconstitucional, caberá à mais alta corte de Justiça do País pronunciar-se a respeito. Esperemos, apenas, que o Supremo Tribunal Federal (STF) interprete a constitucionalidade dessa lei com base nas melhores tradições jurídicas e republicanas, que não incluem a submissão a visões de natureza puramente confessional.