Título: O avesso no espelho
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Nacional, p. A6

PT invoca direito de repetir erros que levaram os tucanos à derrota em 2002 A referência do governo do PT é o governo do PSDB, esta evidência renova-se constantemente nos gestos e palavras do presidente da República e seus correligionários.

Seja em reação ao que faz ou diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, seja para justificar ações de governo ou para explicar o distanciamento em relação a posições do passado recente, governistas vivem em permanente estado de comparação.

Se os tucanos faziam, raciocinam, os petistas também podem fazer. O que for: aumentar juros, elevar impostos, abafar investigações políticas, manobrar maioria parlamentar, escancarar a fisiologia, topar tudo por uma reeleição.

As críticas a ações anteriormente combatidas pelo PT recebem sempre o mesmo tipo de resposta: o governo passado também fez assim.

Ora, fala-se isso como se entre um governo e outro não tivesse havido uma eleição na qual a maioria do eleitorado brasileiro manifestou-se forte e inequivocamente contrária à administração anterior.

A despeito de fernandohenriquistas mais fanáticos lembrarem que não foi ele quem perdeu a eleição para Luiz Inácio da Silva em 2002 e sim José Serra, foi evidentemente em reprovação ao governo Fernando Henrique que as pessoas resolveram eleger Lula em sua quarta tentativa.

E por que?

Porque ele representava a expectativa de ruptura com algo percebido popularmente como mesmice na economia, inépcia no chamado "social" e despudor nas relações político-partidárias.

O discurso mudancista do PT ganhou, portanto, na sociedade. O PSDB perdeu e, como perdedor, surpreende que sirva de referência ao governo do vencedor.

De forma menos estranha se comportam oposicionistas quando enveredam pelo terreno da imitação, repetindo meios e modos do PT no exercício da oposição.

Pode-se questionar esse tipo de conduta - moralmente desmoralizante -, mas é fato que o político que tenta assemelhar-se ao PT acredita agir em sintonia com a proposta vencedora nas urnas. É oportunismo, mas pelo menos faz sentido.

Ao reclamar o direito de agir como seus adversários, o atual governo menospreza a lógica. Na prática, invoca o direito de repetir erros que contribuíram em muito para a derrota dos tucanos em 2002.

É esquisito, mas no lugar de fazer diferente, de reforçar o discurso que saiu vitorioso, aprofundar as discrepâncias entre si e o opositor, o governo faz o contrário: dá razão, confere perfeita legitimidade àqueles a quem a maioria disse não.

E mais: faz do mesmo bem pior.

Defende qualquer um que se veja envolvido em denúncias, rompe com todos os limites do pudor nas relações fisiológicas com os partidos dos quais pretende apoio, joga aberta e assumidamente tudo na reeleição do presidente.

Além disso, quer fazer a nação crer que há igualdade de situações entre a proposta de uma "CPI da Corrupção" feita pelo PT no último ano de governo FH - onde se pretendia "lavar a roupa suja do país" - e os casos de Waldomiro Diniz e dos Correios. Nestes, auxiliares do governo são mostrados em atos de corrupção explícita que, em tese, até dispensaria inquéritos.

Mas, mesmo que as situações fossem absolutamente iguais, o ato malfeito de um não pode justificar a ação imperfeita do outro.

Menos ainda quando o "outro" conseguiu chegar ao poder porque convenceu a maioria das pessoas de que, uma vez chegando lá, faria as coisas de maneira diferente, estava preparado para isso e tinha as soluções para enfrentar as questões nas quais o antecessor havia falhado.