Título: Watergate: repórter revela detalhes
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Internacional, p. A20

O minucioso relato que Bob Woodward publicou ontem no Washington Post sobre a história de suas relações com W. Mark Felt, que esta semana desvendou um dos grandes mistérios dos últimos tempos - ao revelar que é "o cara que chamavam de Garganta Profunda" durante o episódio do Watergate - elucida dois pontos centrais do maior escândalo político da história americana. Por um lado, deixa claros os motivos pessoais e políticos que fizeram o ex-vice-diretor do FBI confiar a um repórter iniciante segredos oficiais cuja divulgação desencadeou a crise que derrubou o presidente Richard Nixon, em 1974. Por outro, torna evidentes as razões profissionais, éticas e até afetivas que levaram Woodward a honrar até o final o pacto de confidencialidade que fez com Felt. Levou tão a sério o compromisso que se deixou furar no capítulo final da saga que ele e Carl Bernstein - seu colega do Post na época - iniciaram em 20 de junho de 1972. Foi nesse dia que eles deram o maior furo do todos os tempos: a primeira informação do escândalo Watergate - obtida, aliás, sem a ajuda de Felt. O jornal havia descoberto que James W. McCord, um dos cinco homens que dois dias antes tinham sido flagrados pela polícia, de madrugada, no Comitê do Partido Democrata, no edifício Watergate, era coordenador de segurança e funcionário pago da campanha de Nixon à reeleição.

Alto funcionário do FBI, Felt atuara por meses como diretor interino por causa da saúde declinante de seus superiores. Segundo Woodward, ele ficara arrasado por ter sido preterido por Nixon na escolha do sucessor do legendário chefe da polícia federal americana, J. Edgard Hoover, morto em abril de 1972. "Felt acreditava que estava protegendo o FBI ao buscar uma maneira clandestina de tornar públicas algumas informações de entrevistas e dos arquivos da agência, para ajudar a fazer pressão pública e política e (obrigar) Nixon e seus assessores a responder (por seus atos)."

Segundo o jornalista, Felt "sentia apenas desprezo pela Casa Branca de Nixon e por seus esforços de manipular o FBI por razões políticas. A jovem e ansiosa patrulha de fuçadores da Casa Branca, melhor exemplificada por John W. Dean III, era algo odioso para ele". Dean, o assessor jurídico da Casa Branca na época do Watergate, que mais tarde virou-se contra Nixon e tornou-se testemunha-chave da comissão parlamentar que investigou o caso e iniciou o processo de impeachment do presidente, deixou claro esta semana que a antipatia era mútua. Ele disse, na terça-feira, que a admissão por Felt de que foi a fonte oficial supersecreta que guiou Woodward em suas investigações sobre o escândalo levantou tantas perguntas quanto as que elucidou. Segundo Dean, o ex-diretor do FBI não tinha acesso às informações que passou ao repórter do Post.

Woodward conta que confirmou anos mais tarde o ódio que Felt nutria pela Casa Branca de Nixon ao ler o livro de memórias que o ex-diretor do FBI - "um homem mais erudito do que muitos se davam conta" - publicou em 1979.

Nele, Felt usou a palavra "gauleiter" para descrever Tom Charles Huston, um jovem assessor de Nixon que em 1970 propôs um plano para autorizar unidades do FBI, da CIA e das Forças Armadas a intensificar espionagem eletrônica, violar correspondência e conduzir outras formas ilegais de investigações contra "ameaças domésticas de segurança". Gauleiter era o líder ou chefe local na estrutura de controle nazista da Alemanha de Adolf Hitler.

Sobre como Woodward desenvolveu, usou e protegeu seus valiosos laços com Felt, o relato de três páginas feito pelo jornalista, que será o capítulo de abertura de um livro a ser lançado em breve, esclarece que se tratou de muito mais do que uma simples relação trivial entre uma fonte oficial e um repórter.

Woodward conheceu Felt em 1970, meses antes de começar sua carreira num pequeno jornal do Estado de Maryland. O primeiro contato entre eles ocorreu durante um encontro casual no subsolo da Casa Branca.

Woodward, segundo-tenente e ajudante de ordens que cursara a Universidade de Yale com bolsa da Marinha, recebera a tarefa de levar um documento a alguém na Sala de Guerra, que funciona num bunker debaixo da mansão presidencial. Felt estava ali cumprindo alguma atribuição de sua alta função e puxou conversa. "Ele era entre 25 e 30 anos mais velho do que eu e carregava o que parecia ser uma pasta", escreve Woodward.

"Tenente Bob Woodward, senhor", apresentou-se. "Mark Felt", respondeu o funcionário. "Ele não mostrou nenhum interesse em engajar-se numa conversa demorada, mas eu insisti. Finalmente, extraí dele a informação de que era vice-diretor do FBI encarregado da Divisão de Inspeções, imcumbida de atividades clandestinas, um cargo importante sob J. Edgard Hoover", relata Woodward. Ao fim da conversa, Woodward pediu seu telefone. Ele lhe deu o número de sua linha direta no FBI.

Começara uma amizade que levaria Woodward a freqüentar a casa do alto funcionário do FBI , em Virgínia. Alguns meses mais tarde, telefonou a Felt para contar-lhe que arrumara um emprego de repórter num jornal local de um subúrbio de Washingon, depois de fracassar fragorosamente numa experiência de duas semanas no Washington Post.

Ter acesso direto e uma relação de certa confiança com alguém no alto escalão do FBI revelou-se inestimável dois anos mais tarde, quando Woodward, já trabalhando na seção local do Post, recebeu a tarefa de escrever sobre o estranho arrombamento no edifício do Watergate. Em seu primeiro telefonema a Felt sobre o assunto, o repórter ouviu que ele não gostava que o jornalista o chamasse no escritório mas adiantou que o caso iria "esquentar" por razões que não podia explicar. O segundo telefonema aconteceu depois que Woodward avançou mais um pouco, por conta própria, em sua investigação, conseguindo confirmar que E. Howard Hunt, que trabalhava na campanha de Nixon e cujo telefone, na Casa Branca, a polícia encontrara num caderno de endereços de um invasores da sede democrata, tivera longa carreira na CIA .

O terceiro encontro aconteceu depois de várias tentativas frustrada feitas por Woodward. Até que uma noite o repórter foi até a casa do diretor do FBI. Nesse encontro, Felt, que trabalhara na seção de contra-espionagem do FBI durante a 2.ª Guerra Mundial, combinou com o repórter os sinais e os métodos dos contatos entre eles, que passaram a ser feitos em pessoa, num estacionamento subterrâneo.

Quando Woodward queria falar com Felt fazia um sinal no apartamento em que vivia no centro de Washington. Até hoje o jornalista desconhece como Felt mantinha o local sob vigilância em busca do sinal combinado. Ele também não sabe como Felt era capaz de confirmar os encontros desenhando os ponteiros de um relógio mostrando a hora aprazada de uma nova conversa na cópia do New York Times que estava a sua espera na portaria do prédio.

"Foi apenas mais tarde, depois da renúncia de Nixon, que eu comecei a me perguntar por que Felt falou quando isso continha riscos substanciais para ele e o FBI", escreve Woodward. "Suspeito que, em sua mente, eu era seu agente. Ele martelou em minha cabeça: segredo a qualquer custo, nenhuma conversa fiada, nenhuma conversa sobre ele, nenhum indicação de que tal fonte secreta pudesse existir."

A ordem foi seguida tão à risca que até o então editor-chefe do Post, Ben Bradlee, só foi informado da identidade do Garganta Profunda depois que Nixon havia renunciado. Bradlee elogiou Woodward e Berstein, seus antigos protegidos, por terem levado o furo sobre o Garganta Profunda. "Você ganha tanto em prestígio por honrar sua palavra quanto perde por não dar o furo", disse o veterano jornalista de 84 anos, hoje aposentado.