Título: O segredinho sujo do projeto da União Européia
Autor: Gilles Lapouge
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2005, Internacional, p. A21

Seja o que for que você pense a respeito da integração européia, há algo inspirador em 20 milhões de pessoas que, depois de ouvir de seus mais respeitados políticos o que fazer, e de ouvi-los atentamente, fazem exatamente o oposto do que ouviram. Os referendos desta semana na França e Holanda foram provavelmente o evento mais significativo na história européia desde o fim da guerra fria. Como na Alemanha, depois que seus cidadãos descobriram que podiam arrancar pedaços simbólicos do Muro de Berlim com impunidade, a vida cotidiana na Europa pode continuar como era, mas nada será exatamente o mesmo. No entanto, não espere ouvir debates sérios sobre o significado dessa revolta popular contra a "idéia de Europa" por meses. A primeira reação será fingir, ou até acreditar sinceramente, que nada muito grave aconteceu.

Na França, o resultado do referendo criou na mídia uma fábrica de racionalizações supérfluas. A mais popular e confortante para os eurófilos é a idéia de que o fiasco do referendo foi só mais um exemplo da inabilidade de Jacques Chirac para interpretar o estado de espírito popular. A relação perversa de Chirac com a opinião pública ganhou outra reviravolta bizarra com a indicação de Dominique de Villepin como primeiro-ministro. Villepin é visto como alter ego de Chirac. Sua indicação é uma rejeição direta e provocativa das exigências dos eleitores por um novo tipo de político.

Apesar de Chirac parecer um bode expiatório perfeito, sua impopularidade não pode ser culpada pela votação na Holanda, nem pelo sentimento anti-União Européia na Dinamarca, Suécia e Grã-Bretanha. O establishment político precisou, então, encontrar outra desculpa: as pessoas não estão votando contra a Europa, mas contra a globalização e a economia de mercado. Em toda a Europa, até em países tradicionalmente adeptos do livre comércio, como Holanda, Alemanha e Dinamarca, há temores generalizados sobre competição e imigração mundiais, seu impacto nas culturas nacionais, assim como nos salários, pensões e empregos. É tentador para os eurófilos concluir que os votos contra a Constituição da UE não representam antipatia quanto à integração européia, mas sim quanto à integração global nos termos ditados pelo liberalismo econômico anglo-saxão e os interesses dos EUA. Com esta visão, a Constituição deveria ter oferecido mais proteção contra o comércio exterior, competição financeira, imigração e cultura americana. Então, os eleitores a teriam aprovado.

Mas há um erro mais profundo na desculpa dos eurófilos de que os resultados do referendo foram, na verdade, um protesto contra a globalização: a visão da Europa como um bastião contra a globalização e o liberalismo econômico anglo-saxão é não só uma fantasia política, mas também um castelo de cartas econômico. A Europa é mais dependente de comércio externo, investimento e fluxo de capital do que a América. Os negócios e bancos europeus são mais vulneráveis do que a América aos movimentos monetários e fluxos de capital mundiais. Não há alternativa ao sistema capitalista de administração econômica que possa garantir a sobrevivência das indústrias de trabalho intensivo da Europa contra a competição chinesa ou tornar seus benefícios sociais e horas de trabalho limitadas sustentáveis em uma época em que os aposentados estão crescendo e as populações de trabalhadores estão em declínio.

A idéia de que uma integração política mais intensa pode de alguma forma transformar esses sonhos auto-indulgentes em um novo "modelo econômico" europeu é o segredinho sujo do projeto da UE. Claro que os cidadãos da Europa gostariam de salários cada vez maiores e cada vez mais segurança no emprego, em troca de trabalhar cada vez menos e aposentar-se cada vez mais cedo - e eles podem ficar tentados a votar para uma Constituição que garantisse essas fantasias como direitos humanos fundamentais. Num exame mais detalhado, no entanto, os cidadãos começaram a perceber que seus políticos estavam vendendo a Europa com uma propaganda falsa. O mercado único e a fusão de políticas de comércio externo criaram prosperidade, mas todo projeto subseqüente de integração européia não só fracassou em entregar os resultados que os políticos prometeram, como também piorou as coisas.

Os políticos não podem mais abusar da "idéia de Europa" como uma desculpa por falharem em suas próprias responsabilidades - administrar a economia, estabelecer uma política externa ou equilibrar investimento com proteção social. De agora em diante, a Europa será julgada não pela retórica, mas por resultados. Por isso, todos devemos gratidão aos eleitores da França e Holanda.