Título: Menos conflitos, mais Mercosul
Autor: Miguel Jorge
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Quem decretar a morte do Mercosul, em razão das divergências entre Brasil e Argentina, como já fizeram ministros argentinos, o Prêmio Nobel americano Robert Mundell, todos insignes economistas, e uma pletora de autoridades brasileiras, pode arrepender-se mais cedo do que imagina. Com problemas políticos, econômicos e estratégicos para incrementar o comércio no bloco, que causam sensível atraso ao processo de integração, Brasil e Argentina talvez não tenham acordado para uma realidade: se seus governos não se ajustarem melhor ao bloco, ele custará a decolar. Mas morto ou em fase terminal, nem pensar nisso. Declarações de autoridades na recente Cúpula América do Sul-Países Árabes, somadas à visão estreita, que subordina a integração só a interesses comerciais, e às divagações sobre querelas entre os dois países, turvam as relações bilaterais e complicam o diálogo e os esforços para se estabelecerem acordos econômicos. E criam uma distância entre os dois países que só se pode vencer se Brasil e Argentina se centrarem nas suas sociedades nacionais e nas suas instituições políticas.

Políticos - com a louvável exceção do presidente Lula -, industriais e parte da mídia argentina e brasileira, possivelmente, não perceberam que o apocalipse nacionalista estridente e raivoso que anunciam não se ajusta à regionalização das economias nem à operacionalização de um mercado comum. A propósito desse impasse no Mercosul, o ex-presidente argentino Raúl Alfonsín declarou que "não se concretizam objetivos imaginando-os, simplesmente, e tampouco com gritos de protesto: é necessário trabalho permanente, sistemático e sério, sobretudo sério".

Portanto, custa a crer que setores de ambos os governos se coloquem contra a normalização das relações, renegando até a lógica da construção do bloco pelo Acordo de Ouro Preto, que já trouxe bons resultados às suas economias e às dos outros sócios, Paraguai e Uruguai.

Que caminhos, então, se abririam ao Mercosul, considerando que suas exportações, sua capacitação tecnológica, seu agrupamento de recursos, a competitividade das empresas, etc., dependem basicamente da parceria dos Estados e dos governos, e não dos objetivos setoriais dos sócios? Apesar de um país precisar do outro, a impressão deixada pela visita do presidente Néstor Kirchner durante a referida cúpula é a de que Brasil e Argentina poderiam negociar melhor políticas e ferramentas, fortalecendo suas empresas para competirem com as grandes indústrias dos países do Primeiro Mundo.

Apesar de uma tumultuada história política (como a nossa, aliás), da escassez de certas matérias-primas e da obsolescência de parte de seu parque industrial, a Argentina ainda é dos poucos países que se podem igualar aos mais desenvolvidos, enquanto o Brasil é hoje a maior economia da América Latina, com excepcional potencial de crescimento.

No entanto, a impressão deixada pela visita de Kirchner e as supostas ambições do governo petista na América Latina, além da esdrúxula tese de que integração é sinônimo de hegemonia econômica, tiveram mais espaço na mídia do que qualquer sinal dos avanços do Mercosul.

Ora, se há assimetrias econômicas que favorecem o Brasil, como declarou Kirchner, isso não elimina o fato de que, desde o início dos anos 1990, o comércio bilateral vem crescendo e, com ele, os superávits argentinos, que ultrapassaram US$ 1 bilhão. Ou que alguns projetos binacionais Brasil-Argentina possam trazer bons frutos a ambos, começando pela criação da Petrosul, prevista para este mês de junho, que englobará as estatais de exploração de petróleo, pela brasileira Petrobrás e a argentina Enarsa.

Outros exemplos do potencial integracionista do Cone Sul, com ênfase nas relações entre os dois países, poderiam ser mencionados à margem dos "conflitos midiáticos" Brasil-Argentina, que muitas vezes traduzem só projetos corporativos e setoriais, mas valeria a pena relembrar o papel da indústria automobilística. Pois ela representou - e ainda representa - um dos exemplos mais claros da complexidade de uma negociação no Mercosul, das peculiaridades dos Estados e dos choques de interesses entre setores industriais. Juntos, os governos dos dois países já enfrentaram protecionismos contra as suas exportações e chegaram a firmar um acordo em abril de 2000 para incentivar seus setores privados a fazer acordos comerciais para incrementar trocas comerciais e identificar problemas que pudessem comprometê-las.

Essa prática, afinal, continua em vigor na Argentina e no Brasil, com o bloco sul-americano vivenciando uma sucessão de movimentos que resultam em entendimentos que, aos poucos (mais lentamente do que se esperava, é verdade), fortalecem a capacidade competitiva das suas empresas.

Que Brasil e Argentina têm condições de responder com mais eficácia às exigências do seu crescimento, disso não se duvida. Mas é preciso que saibam construir, em cada negociação, uma nova etapa na relação entre seus governantes e suas sociedades, uma vez que integração pressupõe a busca de um futuro comum. Isso significaria, como declarou o presidente Lula, após a volta do presidente Néstor Kirchner a Buenos Aires, ao final da cúpula, "deixar o varejo de um ou outro setor econômico que se julgue prejudicado", para encarar o contexto das relações e o futuro do bloco.

Portanto, a questão central é que os países membros do Mercosul, sobretudo a Argentina, definam, com base nos seus alicerces políticos, econômicos, comerciais, etc., até que ponto estão aptos para enfrentar os obstáculos à melhoria do padrão de vida de suas populações.

Miguel Jorge, jornalista, é

vice-presidente de Recursos Humanos e de Assuntos

Corporativos e Jurídicos do Santander Banespa