Título: Mais uma cartilha
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2005, Editoriais, p. A3

Depois do polêmico sistema de cotas defendido pelo Ministério da Educação (MEC) a pretexto de "democratizar" o acesso ao ensino superior e da hilariante cartilha de nomes politicamente incorretos distribuída recentemente pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o governo voltou a reincidir no erro de tentar promover "inclusão social" por meio de iniciativas desastradas. Só que, desta vez, o problema é bem mais grave, na medida em que envolve crianças com deficiência física, sensorial ou mental, convertendo-as em objeto de demagogia política. Sob alegação de que a Constituição lhes assegura os mesmos direitos das demais crianças, o MEC, em colaboração com o Ministério Público Federal (MPF), está distribuindo 60 mil cartilhas estimulando as escolas públicas a colocar, na mesma sala de aula, alunos comuns e alunos que necessitam de atendimento especial. Embora seja óbvio que crianças com determinado grau de deficiência não têm condição de acompanhar as aulas regulares do ensino fundamental, a justificativa é que essa medida poderia levar a rede escolar a se "abrir à diversidade", mudando com isso a educação no País.

Tão ou mais absurda do que essa pretensão é o caráter autoritário da estratégia adotada para implementá-la. Numa determinada passagem, a cartilha chega a ponto de ameaçar os pais, acusando-os de cometer "crime de abandono intelectual" se não matricularem filhos deficientes na rede pública. "Não é que vamos sair mandando prender os pais. Cada caso será analisado pelos promotores. Quem teve seu filho rejeitado na escola não será prejudicado", afirma a autora do texto, a procuradora da República Eugênia Fávaro, esquecendo-se de que, no Estado de Direito, o julgamento de qualquer crime cabe ao Poder Judiciário, e não ao Ministério Público.

Justificado em nome de suas boas intenções, esse tipo de terrorismo dá a medida de como a política educacional do governo vem sendo conduzida. As mesmas autoridades que até agora não conseguiram dar oito anos de escolaridade para todas as crianças de 7 a 14 anos e estão preparando um projeto para aumentar em um ano a faixa de ensino obrigatório, também querem colocar crianças deficientes num sistema falido, colégios com salas superlotadas, professores malformados e desestimulados e projetos pedagógicos ultrapassados. "O projeto de inclusão não pode ser mais adiado por entender que as escolas não estão preparadas. É preciso matricular a criança, estabelecer a relação professor-aluno e então perceber o que é necessário para que ela aprenda", afirma a secretária de Educação Especial do MEC, Cláudia Dutra, esquecendo-se das graves deficiências de nossa rede pública de ensino.

Mas esse é só um dos aspectos do problema. O outro diz respeito ao alcance da política de inclusão. Embora a convivência de crianças com algum tipo de deficiência com outras de sua idade seja defendida no mundo inteiro, como forma de reduzir o preconceito e assegurar o desenvolvimento social e intelectual dos excepcionais, os próprios especialistas são os primeiros a afirmar que essa não é uma medida para ser adotada em todos os casos. Em outras palavras, mesmo que nossa rede escolar pública tivesse padrão suíço de qualidade, há certos graus de deficiência que não permitem a inclusão. É por isso que o voluntarismo irresponsável do MEC e do MPF está causando indignação entre pedagogos, ONGs e instituições sem fins lucrativos.

"Como dar atenção a um aluno especial numa sala com 50 crianças?", indaga o presidente da Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, Carlos Ramiro. "Há casos graves de deficiência mental em que não se consegue saber qual é o nível de compreensão da criança", afirma o presidente da Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes), Luiz Alberto Silva. "Em municípios onde não estamos, há ainda deficientes amarrados ao pé da cama", conclui.

Mais uma vez, como se vê, dirigentes e procuradores estão cometendo um erro crasso, em nome de uma causa nobre. O problema não está na inclusão em si, mas no modo açodado e demagógico como o MEC e o MPF estão tratando a questão, por meio de uma cartilha autoritária, atemorizando pais, desprezando o trabalho que as Apaes e outras entidades meritórias realizam há anos e sobrecarregando uma rede escolar que hoje não consegue nem mesmo cumprir seu papel básico.