Título: 'A meta de inflação não vai mudar'
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2005, Economia, p. B4

"Não há respaldo para avaliação de que capital especulativo esteja valorizando o real."

INVESTIMENTOS: "A economia caminha para a estabilidade e a estabilidade por si só gera investimentos."

RESERVAS: " Desde janeiro de 2004 temos uma política de acumulação de reservas. Não há metas para isso." Celso Ming Depois de um dia exaustivo dedicado a ouvir os economistas de instituições financeiras e grandes grupos econômicos, o diretor de Política Econômica do Banco Central, Afonso Sant'Anna Bevilaqua, deu entrevista ao Estado na qual se destacam os quatro pontos seguintes: 1) O BC não vai rever a meta de inflação deste ano: 2) Não há compromisso do Banco Central em voltar imediatamente às compras de dólares; 3) Não há forte entrada de capitais especulativos que esteja provocando a baixa do dólar; e 4) a grande expansão do crédito ajudou a acirrar a inflação, mas mostra a existência de uma mudança estrutural desejada, que não pode ser revertida.

Como entender a revelação do diretor de Política Monetária, Rodrigo Azevedo, de que o Banco Central vai voltar às compras de dólares para recompor reservas?

Desde janeiro de 2004 temos um programa de acumulação de reservas. Não há metas para isso. O cumprimento desse programa leva em conta três princípios: primeiro, a existência de condições de mercado adequadas; segundo, um grau adequado de volatilidade das cotações da moeda estrangeira; e terceiro, não interferência na tendência de flutuação do câmbio. Há momentos em que os fundamentos justificam uma depreciação do câmbio; há momentos em que não justificam. Mas a recomposição de reservas continua.

Se é preciso aumentar as reservas, seu nível atual não é o ideal. Qual é o nível ideal?

Não se pode estabelecer a priori. Um dos fatores que vai determiná-lo é a percepção dos agentes sobre isso. Em geral, sabemos que o nível ideal foi atingido apenas depois de atingido.

E como sabemos que não foi atingido?

Pela análise do balanço de pagamentos, vemos que há espaço para aumento das reservas de maneira a melhorar a percepção de risco da economia.

Se há esse espaço, por que o Banco Central parou de comprar a partir de março?

Porque avaliou que as três condições básicas não estavam adequadamente cumpridas.

Há um horizonte que permita visualizar o cumprimento dessas condições?

Não há data para isso. Pode demorar meses, pode acontecer de um dia para o outro. A cada momento estamos verificando se estão dadas essas condições.

Além de terem um custo fiscal (exigem recursos orçamentários), as compras de dólares trombam com a política monetária (política de juros) na medida em que provocam desvalorização do real e isso tem certo impacto inflacionário. A decisão de suspender as compras em março teve por objetivo permitir que a política monetária pudesse trabalhar melhor a favor do tombo da inflação?

Quando compra dólares para as reservas, o Banco Central o faz de maneira a não produzir efeito sobre o câmbio. Por isso, as compras de dólares não trombam com a política monetária.

Os juros altos estão sendo responsabilizados por um grande fluxo de capitais especulativos cujo efeito é derrubar a cotação do dólar e prejudicar as exportações. O ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore recomendou a imposição de um IOF, que é uma espécie de pedágio destinado a inibir a entrada desses recursos. Há essa enxurrada de capitais?

As estatísticas não dão nenhum respaldo a avaliações de que os capitais especulativos estejam provocando valorização do real. No período de janeiro a maio, houve entrada líquida de US$ 17,8 bilhões do comércio e saída líquida de US$ 9,3 bilhões de capitais financeiros. O saldo positivo é de US$ 8,5 bilhões, que provém das exportações.

O presidente Lula admitiu que um dos três maiores erros de sua administração foi sobrecarregar demais a política monetária e não acionar outros instrumentos que ajudassem a baixar a inflação. Que instrumentos não acionados são esses? E por que não foram acionados?

O instrumento de que o Banco Central dispõe para controlar a inflação é a taxa de juros. A atuação dos bancos centrais não se dá no vácuo; ela se dá no contexto de economias que podem ter características estruturais que façam com que haja maior ou menor inflação associada a uma mesma taxa de juros. Economias com maior competitividade ou com pressão fiscal menor facilitam o trabalho da política monetária.

Que fatores deixaram de ajudar ou atrapalharam o serviço da política monetária? Foi o excessivo aumento das despesas públicas ou a maior carga de impostos que aumentou a inflação?

O Banco Central avalia o ambiente da economia e opera a política monetária sob as condições existentes. Não cabe ao Banco Central exigir que essas condições sejam mais favoráveis para a implementação da política monetária.

Muitos economistas responsáveis sugerem que o governo reduza suas despesas para que o Banco Central não fique tão sobrecarregado...

Na nossa avaliação, não seria possível o controle da inflação, como vem acontecendo, sem a decidida contribuição de uma política fiscal comprometida com a sustentabilidade das contas públicas.

Quarta-feira o presidente Lula disse que a economia terá uma boa surpresa ainda este ano. Dá para contar com o tombo dos juros pelo menos a partir do terceiro trimestre?

A decisão sobre os juros é tomada nas reuniões do Copom. Não é possível antecipar qualquer coisa sem uma avaliação cuidadosa do comportamento da economia e da inflação.

Quer dizer que, quando disse isso, o presidente não usou a ótica do Banco Central?

Penso que ele estava usando a ótica de chefe de governo, desejando que a economia evolua favoravelmente a médio prazo.

A meta de inflação deste ano, de 5,1%, não está baixa demais? Não é irrealista, como dizem tantos críticos do Banco Central?

Essa meta é muito alta quando comparada com as de outras economias, inclusive com as de países emergentes.

Não obstante, o Banco Central não pretende rever essa meta?

São ilusórios os benefícios que uma revisão dessas poderia trazer. No momento em que houvesse essa revisão para cima da meta, a expectativa dos agentes econômicos seria mudada e, apenas em conseqüência disso, a própria inflação aumentaria. Não há a menor perspectiva de revisão das metas de inflação deste ano e de 2006.

O crescimento do crédito, tanto pelo BNDES como pelos bancos, está sendo apontado como um dos responsáveis pela expansão do consumo e pela alta dos preços. Por que o Banco Central não tratou de conter a expansão excessiva do crédito?

O crédito se expandiu por várias razões. Uma delas foi a introdução do crédito consignado (desconto em folha), que provocou mudanças estruturais, cujo mérito é o aumento do volume do crédito na economia. Com mais crédito, a política monetária, como instrumento de controle de preços, será mais eficaz. Não faria sentido atacar inconveniências de curto prazo com a interferência no curso de uma mudança estrutural que trará tão grandes benefícios.

Praticamente todo o comércio brasileiro trabalha com crédito que aumenta em mais de 100% ao ano os preços das mercadorias, porque impõe um pagamento de 4, 5 ou mais prestações "sem juros" e embute antecipadamente o custo financeiro no preço à vista. Por que o Banco Central não atua nesse segmento de modo a evitar esse efeito inflacionário?

O Banco Central controla apenas indiretamente a expansão do crédito por meio dos juros.

Os números do PIB acusaram uma queda de 0,6% no consumo das famílias. Isso é efeito direto da política de juros? E se esse efeito está sendo produzido, os juros não estão suficientemente elevados para segurar a inflação?

É normal que haja alternâncias de trimestres com mais e trimestres com menos atividade econômica. Essa queda do consumo aconteceu depois de seis trimestres consecutivos de crescimento do consumo, algo inédito desde 1994.

Mas isso só aconteceu em conseqüência dos juros ou eles não tiveram nada com isso?

Desde setembro está em curso esse ajuste, mas não há como saber qual foi a contribuição da política monetária para isso.

A forte queda do investimento não vai, lá na frente, provocar oferta insuficiente de mercadorias e serviços e, nessas condições, não vai atrapalhar o controle da inflação?

O investimento começou a cair no último trimestre do ano passado. Antes disso, tivemos cinco trimestres consecutivos de crescimento contínuo do investimento a taxas muito elevadas. Essa volatilidade é normal. Além disso, tivemos neste primeiro trimestre o efeito da quebra de safras sobre os investimentos em máquinas agrícolas. Também no último trimestre de 2004 houve a formação de estoques para materiais de construção civil que interferiram nas estatísticas do primeiro trimestre. Mas são elementos conjunturais que tendem a se comportar diferentemente nos trimestres seguintes. O que dá para dizer é que a economia vai caminhando para a estabilidade e que a estabilidade econômica por si só gera investimentos.

O maior custo do ajuste monetário ficou concentrado neste ano para que, no ano que vem, haja condições para desaperto. Esse efeito eleitoral foi intencional?

O grande beneficiário do controle da inflação é o povo brasileiro, que obtém com isso um aumento real de renda.

Um dos vilões da inflação é o comportamento dos preços administrados, quase sempre reajustados pelo IGP-M. Como o IGP-M está sendo contido, não se espera que o aumento menor dos preços ajude a derrubar a inflação?

Nos últimos trimestres, a inflação foi provocada tanto pelos preços livres como pelos preços administrados. À medida que se confirmar a convergência entre os índices de inflação, o impacto dos preços administrados sobre a inflação tenderá a perder relevância. A última pesquisa Focus mostra que o mercado espera uma evolução do IGP-M para este ano de 6,4%.

Há três dias, o chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, adiantou que a dívida líquida sobre o PIB havia fechado maio abaixo dos 50%. Se o dólar permanecer abaixo dos R$ 2,50, a quantas poderemos fechar o ano?

Não fazemos projeções sobre isso. Nossa previsão a médio e longo prazo é de queda dessa relação.