Título: É a politicagem, estúpidos!
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com 200 votos, Luís Pereira, pintor de paredes, ganhou o cargo de deputado federal, em Pernambuco, suplente que era de Francisco Julião, comandante das Ligas Camponesas, eleito em 1962 e cassado em 1964. Chegando a Brasília, foi lhe perguntado: "Como está a situação?" Simplório, mas querendo fazer bonito, foi logo desembuchando: "As perspectivas são piores do que as características." O nobre deputado jamais imaginaria que, 41 anos depois, a perífrase quase filosófica viria a calhar como o melhor diagnóstico para definir o atual momento nacional. Pois as perspectivas que se apresentam, a partir das pesquisas que mostram "desaceleração geral" no País e queda na avaliação positiva de Lula e de seu governo, não são das melhores. E as características destes tempos de desvendamento de escândalos, se bem que tensas e tumultuadas, ainda podem ser razoavelmente administradas, bastando ver a intensa mobilização do aparato governamental, que inclui até a "nomeação" do maestro da orquestra, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, como "coordenador" provisório para barrar a CPI dos Correios. O risco é a economia acabar navegando na canoa furada da politicagem. O fato é que o governo Lula vive seu instante mais atípico. Acossado pela iminência de instalação de uma CPI, que se poderá transformar em tuba de ressonância de desmandos na administração federal, perturbado em razão da previsão de queda continuada de índices econômicos, o governo não tem alternativas para reverter o sufoco a que está submetido. Se matar a CPI na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) ou no plenário da Câmara, poderá vê-la renascer no Senado e, ainda, passar pela vergonha de querer jogar lixo debaixo do tapete. O efeito já começa a ser também devastador para o PT, que durante mais de 20 anos organizou uma tonitruante banda de música acostumada a tocar refrãos do tipo "transparência já, CPI já, democracia já, fora FHC".

A esta altura, pouco importa se a CPI será instalada. A mobilização de forças que o governo está promovendo para evitar a apuração de negócios escusos em seus domínios gera uma gigantesca bolha de contrariedade em núcleos centrais e periféricos, conforme se pode deduzir da última pesquisa CNT/Sensus, em que se lê que mais da metade dos brasileiros tem conhecimento do escândalo, dos quais 86% apóiam a CPI dos Correios. Como a questão está escancaradamente exposta ao crivo da opinião pública, não sairá de foco tão cedo. Primeiro, porque as oposições se esforçarão para dar ressonância aos casos. Depois, porque a mídia sabe que o rolo da corrupção é como novelo que se vai esticando à medida que se puxa o fio. O jogo de pressão e contrapressão poderá redundar ainda na CPI dos Bingos - e na investigação da conduta de Waldomiro Diniz, ex-assessor do ministro José Dirceu -, cuja instalação depende de julgamento pelo STF de seis mandados de segurança movidos pela oposição contra ato do ex-presidente do Senado José Sar ney. (Por falar neste aliado do presidente Lula, no ciclo da Nova República, quando ele governou o País, foram instaladas 17 CPIs, uma a cada 5,3 meses, recorde absoluto.)

Se o clima político aponta para acirramento de tensões e intensificação da guerra entre facções governistas e oposicionistas, medidas paliativas ou jogadas para platéias não conseguirão amenizar a crítica social. A decisão do governo de realizar pregões eletrônicos para as compras da União, tornando mais transparente o acerto de preços, apesar de oportuna, é uma compressa na metástase do corpo federal. Cobre parte da ferida, não o todo. Choque moral, como promete Lula, só mesmo se causar impacto e provocar atitudes morais. Moralidade, porém, neste país, quando nasce por decreto, já sai meio torta. Haverá sempre um jeito de driblar a norma. Aliás, este mesmo choque moral inspirou a promessa de um partido de direita, o PP, não o do Severino, mas o de Portugal (Partido Popular), por ocasião das eleições legislativas antecipadas de 20 de fevereiro passado. Quisesse efetivamente promover um choque para resgatar a credibilidade em queda, Lula enxugaria o Ministério, tiraria apadrinhados políticos de cargos-chave da administração, colocaria no lugar perfis técnicos, conclamaria partidos para o compromisso cívico de impor barreiras ao fisiologismo predatório e incentivaria a reforma política, entre outras medidas.

Ora, escopo desse tamanho é para governante grande. Lula, como se percebe, apequena-se. Vai ficando menor que os mais baixos na medida em que se esvai o tempo de governo. E a razão é conhecida. A imagem de gigantes éticos, historicamente lapidada por Lula e pelo PT e inspirada em virtudes absolutas, aparece agora completamente desfigurada. Os costumes execráveis da política e as vontades despudoradas de partidos guiados pelo cifrão balizam decisões e dão o tom maior da política. Será esta a razão para o homem do cofre, o ministro Palocci, ser convocado para despachar nas proximidades do presidente, no Palácio do Planalto? A operação de morte contra a CPI dos Correios é tão crucial para o governo Lula a ponto de uma das poucas pessoas respeitadas do Ministério entrar no cambalacho? Que equívoco monumental. Como pano de fundo, ouvem-se clamores se alastrando contra os rumos da política econômica. E, no traçado da estatística, a economia começa a descer a ladeira. Até o crescimento do PIB em 2004, o anunciado e comemorado índice de 5,2%, foi rebaixado para 4,9%. (Mesmo assim, Lula irradia otimismo, dando vazão ao sentimento de que vive noutro mundo.)

A crise das ilegalidades toleradas, de cunho fundamentalmente político, pode resvalar para a área econômica. A mudança de casa de Palocci é sinal revelador. Pressões por mudanças na economia, pulmões sociais clamando por avanços que não vieram e cofres abertos, nas proximidades do pleito presidencial, formam a receita ideal da turbulência. É fácil deduzir: o fator político, com a carga negativa que carrega, poderá ser vital para Lula. O famoso bordão que inspirou a primeira campanha de Bill Clinton, nos EUA, de autoria de James Carville - "é a economia, estúpido" -, vai ganhando por aqui outra versão: é a politicagem, estúpidos!