Título: A novela Garoto/Nestlé
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/06/2005, Notas & informações, p. A3

Pela primeira vez, em mais de quarenta anos de funcionamento, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem uma de suas decisões questionada na Justiça. Trata-se do veto à compra da Garoto pela Nestlé. Segundo o órgão, que tem poderes para anular a operação ou exigir que a adquirente se desfaça de marcas e fábricas para assegurar o equilíbrio da concorrência e evitar a formação de monopólios, o negócio levaria à concentração excessiva no mercado de chocolates. Embora a compra da Garoto pela Nestlé tenha sido submetida ao Cade em 2002, só em fevereiro de 2004 o órgão deu a sua decisão, mandando desfazer o negócio. O prazo regimental de 60 dias que o Cade tem para julgar atos de concentração foi excedido em muito por causa do exagerado número de solicitações de informações, diligências, apresentação de pareceres e pedidos de vista. Derrotada no mérito e em todos os recursos que impetrou contra o veto, a Nestlé exerceu seu direito de defesa, tomando a iniciativa inédita de levar o caso da esfera administrativa para a judicial.

Surpreendentemente, um juiz federal de primeira instância, em Brasília, suspendeu, por liminar, a ordem para que a Nestlé se desfizesse da Garoto em 150 dias, a contar de 13 de maio. Com isso, ele interferiu na autonomia de uma das peças-chave do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Abriu um precedente que tende a enfraquecer a efetividade desse sistema num momento em que o País dele mais precisa, dado o alto número de fusões e incorporações de empresas provocado pela globalização da economia.

Era o que se temia desde que o caso Garoto/Nestlé começou a ser objeto das mais variadas pressões. O senador Gerson Camata, do Espírito Santo, onde está a fábrica da Garoto, chegou a apresentar um projeto de decreto legislativo para anular a decisão do Cade, esquecendo-se de que essa medida pode sustar atos normativos ou regulamentadores do Executivo, mas não decisões administrativo-jurisdicionais, como as do Cade. Antes disso, o então representante do Ministério Público no órgão pediu a anulação do julgamento, sem dispor de base legal para fundamentar sua pretensão. E o processo foi ainda mais tumultuado quando um conselheiro sem experiência em direito antitruste, e nomeado para o cargo só por pertencer ao PT, passou a levantar questões de ordem sobre os procedimentos adotados pelo Cade. Enquanto isso acontecia, a renovação do mandato de outro conselheiro, este sim um especialista em concentração econômica e com posição clara contra a operação, era adiada pelo Senado, por pressão da bancada capixaba.

Após a decisão do Cade, a Nestlé apresentou uma proposta que se negara a fazer antes de ter seu negócio vetado. Em troca da aprovação da compra da Garoto, ela se disporia a vender, a seus concorrentes, marcas e produtos equivalentes a 10% do mercado de chocolates e a 20% do de coberturas. Contudo, o regimento do Cade não permite a impetração de recursos para reabrir discussões sobre o mérito de decisões já tomadas, admitindo, apenas, a discussão de eventual desrespeito a procedimentos formais. Por isso, se aceitasse a proposta da Nestlé, o órgão estaria desprezando o princípio da "coisa julgada", comprometendo assim a racionalidade de seu processo decisório.

A verdade é que o Cade acabou sendo elogiado, por analistas independentes e conceituados, pela qualidade técnica da decisão de mérito que deu ao caso. Se levou dois anos para decidir, a demora deveu-se às pressões políticas e manobras processuais que tumultuaram e retardaram a tramitação do processo no colegiado. Por isso, o problema não é de alçada judicial, mas administrativa.

O caso Garoto/Nestlé deixa claro que o governo precisa modernizar a legislação concorrencial, revendo seus prazos e recursos para permitir que o Cade possa atuar em horizonte de tempo compatível com as necessidades das empresas. O que não cabe é a interferência de um juiz de primeira instância com o fim de reformar decisão de mérito de um órgão colegiado do Executivo que tem competência jurisdicional estabelecida em lei. Isso não só enfraquece o Cade, comprometendo a instância administrativa da defesa da concorrência, como leva a ordenação do mercado a ficar na dependência de interesses de grupos poderosos e capazes de mobilizar apoio parlamentar para a defesa de seus objetivos, o que não interessa ao País.