Título: O programa nuclear
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Notas & informações, p. A3

Há um ano, durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, o Brasil foi apresentado ao mundo como um possível supridor de combustível nuclear, capaz de fornecer urânio com baixo teor de enriquecimento às usinas daquele país. O anúncio baseou-se num equívoco. O Brasil, que desde o final da década de 80 domina o ciclo completo do enriquecimento do urânio, mas dispunha apenas de instalações experimentais, estava concluindo a construção de uma planta industrial de enriquecimento, em Resende, e algumas autoridades supuseram que o País não apenas seria auto-suficiente em combustível nuclear, como poderia exportá-lo. Na verdade, quando funcionar plenamente, a usina de processamento de Resende, a cargo das Indústrias Nucleares Brasileiras, fornecerá pouco mais de metade do urânio enriquecido consumido pelos reatores em funcionamento no Brasil. Desfeita a confusão criada pelo anúncio precipitado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que representantes dos Ministérios da Defesa, Fazenda, Minas e Energia, Planejamento, Casa Civil e Ciência e Tecnologia elaborassem um Programa Nuclear Brasileiro, cujas linhas gerais o Estado noticiou na edição de domingo. Na sua versão mais conservadora, o Programa prevê a conclusão da usina de Angra 3 (1,3 mil MW) e a construção de um reator de 100 MW na Região Nordeste. Na versão mais ambiciosa, além de Angra 3 seriam construídas duas usinas de 1,3 mil MW cada uma e quatro de 300 MW, também no Nordeste, a um custo total estimado em US$ 14 bilhões.

As justificativas apresentadas para a construção de novas usinas nucleares não convencem. Não será gerando em reatores nucleares o equivalente a um terço da energia produzida por Itaipu que a política externa brasileira adquirirá maior peso. Esse, simplesmente, não é um parâmetro de avalização da influência de um país nos negócios mundiais. Também não procede o argumento de que novas usinas criarão a escala necessária para que o Brasil se torne um exportador de combustível nuclear. Novos reatores apenas aumentarão a demanda de urânio enriquecido, que o Brasil já não consegue atender plenamente.

O Brasil precisa, isso sim, desenvolver a tecnologia de construção de reatores intrinsecamente seguros para estar preparado para atender à demanda energética quando o potencial hídrico atingir o seu limite. E precisa, desde já, desenvolver técnicas de remoção e guarda dos despejos atômicos - esse sim o ponto fraco da indústria nuclear, que gera energia limpa, mas produz dejetos extremamente nocivos ao meio ambiente.

O debate dentro do próprio governo caminha para o impasse, por estar com o foco errado. Projeta-se a construção de até seis novas usinas, quando não se chega a uma decisão sobre o término de Angra 3. Há mais de 20 anos as máquinas da terceira usina do País estão armazenadas no complexo de Angra e na Nuclep. Comprados por US$ 750 milhões, esses equipamentos são mantidos a um custo de US$ 20 milhões por ano. Trata-se de um caro monumento à incapacidade dos governos - a começar pela administração Geisel, que fez o megalomaníaco acordo nuclear com a Alemanha em meados da década de 70 - de elaborar, e executar, um plano viável de desenvolvimento da indústria nuclear. Na última reunião do Conselho Nacional de Política Energética, por exemplo, a decisão sobre o destino de Angra 3 foi mais uma vez postergada, porque os Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente, contra, e da Ciência e Tecnologia e a Casa Civil, a favor, não chegaram a um acordo.

Enquanto prossegue essa discussão interminável e custosa, o governo deveria acelerar a expansão da fábrica de enriquecimento de urânio de Resende, com vistas a atingir a auto-suficiência de combustível não apenas para as necessidades atuais, mas também para atender ao projeto mais conservador do tal Programa Nuclear, em elaboração. Nesse campo, o Brasil corre contra o tempo. A conferência qüinqüenal de revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) foi concluída, na semana passada, sem que houvesse acordos mínimos entre as partes. Mas não sairá da pauta da Agência Internacional de Energia Atômica a proposta do diretor-geral Mohamed El Baradei de estabelecer uma moratória de cinco anos para a construção de plantas de enriquecimento e reprocessamento de urânio. É por aí que as potências nucleares pretendem impedir a proliferação nuclear e, sendo assim, deve o Brasil buscar a auto-suficiência para um programa reconhecidamente pacífico, enquanto é tempo.