Título: A PF nossa de cada dia...
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Nacional, p. A6

Usada como salvo-conduto contra a CPI, polícia já foi alvo de pesadas acusações

O governo tem todos os motivos para saudar e ressaltar o trabalho da Polícia Federal no combate à corrupção. Tem também razão de dividir com ela as glórias, pois muito provavelmente suas ações bem-sucedidas são resultado de condições favoráveis propiciadas por quem tem poder para tal. Portanto, nenhum reparo se pode fazer ao louva-deus generalizado por parte do presidente Luiz Inácio da Silva, sua equipe de ministros e correligionários no Congresso.

Não tão adequada, porém - ou mesmo francamente imprópria e até incongruente com fatos recentes -, é a tentativa de transformar as operações da PF numa espécie de antídoto preventivo ao processo de investigação política proposto e aprovado pela Câmara e Senado para apurar denúncias de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.

Para todos os efeitos, polícia é como militar e diplomata: serve ao Estado, mas não deve obséquios a governos. Muito menos quando os serviços solicitados são de natureza político-partidária.

Sempre que se misturam as coisas aumentam os riscos de se cometerem equívocos. Quando não injustiças e distorções mais graves como, por exemplo, suscitar suspeições a respeito do trabalho da instituição em questão.

Hoje o governo brande com orgulho os resultados apresentados pela PF - não tão eficazes, entretanto, no tocante à participação federal no combate ao crime organizado que sustenta altos índices de violência urbana -, mas já teve oportunidade de exibir-se em estado de aguda contrariedade - por que não dizer, de indignação mesmo - quando a ação policial atingiu os seus.

Nesse diapasão de avaliação referida nas circunstâncias, amanhã o PT pode vir a cair na tentação de outra vez acusar a Polícia Federal de fazer uso do espetáculo e mover-se por interesses outros que não o da lei.

Foram vários os episódios. O mais constrangedor ocorreu não faz seis meses. Em dezembro, o então líder do governo na Câmara, o deputado de nome Professor Luizinho, acusou a PF de pôr em risco "as instituições, o processo republicano e o crescimento do País" por causa de uma operação que desmontou um esquema de fraudes no Tribunal de Contas da União, envolvendo funcionários do tribunal e dirigentes de empresas, entre as quais uma de propriedade do ministro das Comunicações, Eunício Oliveira.

O deputado levantou a hipótese de a polícia estar a serviço do grupo de oposição do PMDB, por causa da proximidade da convenção do partido onde aquela ala defenderia a entrega dos cargos federais ocupados pelo partido.

Pouco antes, dirigentes petistas haviam estrilado bravamente contra a detenção do publicitário Duda Mendonça numa rinha de galo no Rio de Janeiro. Enxergaram na ação um ato de lesa-candidatura contra Marta Suplicy.

Reclamações em termos semelhantes aconteceram em relação a uma operação de busca de apreensão de documentos na Caixa Econômica Federal, no curso das investigações do caso Waldomiro Diniz. O mesmo deputado Luizinho levantou a suspeição: "É estranho, não é? O País deve pensar um pouco nisso."

Realmente, deu o que pensar a recente reação de regozijo do governo quando o Supremo Tribunal Federal abriu investigação contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, mas excluiu a Polícia Federal do processo. Ficamos sem saber se o entusiasmo foi pelos defeitos ou pelas qualidades da polícia. Donde a sobriedade e a impessoalidade são fundamentais como padrão.

Pretender que a investigação em curso na Polícia Federal substitua o processo político proposto pelos signatários do pedido da CPI dos Correios, é deixar de lado a percepção sóbria e impessoal a respeito das diferenças e peculiaridades de cada uma das instâncias de investigação.

Processos judiciais e policiais não são acompanhados pela opinião pública e, quando estão envolvidas pessoas com delegação popular para lidar com o patrimônio pertencente à coletividade, é essencial o acompanhamento e a adoção do critério do decoro.

O que não é aceito como prova legal muitas vezes é suficiente para atestar desvios de conduta em funções públicas. Caso clássico é o do ex-presidente Fernando Collor, condenado na política e absolvido na Justiça.

Exemplo nítido é o da investigação sobre as atividades de Waldomiro Diniz. Toda gente se pergunta hoje em que pé estão, poucos sabem que o inquérito prossegue e a sensação geral é a de que tudo se resolveu intramuros da melhor maneira possível para o acusados e outros possíveis envolvidos.

Tivesse havido CPI, o episódio de alguma maneira estaria resolvido e, seja qual fosse o desfecho, o governo estaria a cavalheiro para argüir a impropriedade de comissões de inquérito propostas no vácuo, sem sustentação real.

Aquele passivo somado agora à evidência do suborno gravado não-reconhecido como fato determinado para a CPI e as repetidas suspeições levantadas a respeito da neutralidade profissional da Polícia Federal em passado recente não autorizam a invocação do bom nome da corporação como salvaguarda à ação do Congresso.