Título: 'EUA devem apoiar Cuba de Raúl'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Internacional, p. A14

Que acontecerá em Cuba logo após a morte de Fidel Castro? Esse tema deve estar entre os principais tópicos da Assembléia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que começa hoje em Fort Lauderdale, na Flórida, além da confrontação entre a Venezuela e os EUA e a crise boliviana. Será a primeira reunião desse porte desde a posse do novo secretário-geral da organização, o chileno José Miguel Insulza. A presença do presidente George W. Bush e da secretária de Estado Condoleezza Rice e o local do evento, no centro geográfico da influente comunidade de exilados cubanos nos EUA, farão da transição de poder que se avizinha em Havana um tema obrigatório. Jorge Domínguez, cubano-americano e catedrático da Universidade de Harvard, traçou para o Estado, os contornos do debate sobre essa questão. Após várias tentativas frustradas de derrubar Fidel, de 78 anos, a Casa Branca parece hoje resignada à esperar a solução biológica. Mas, no ano passado, a administração Bush divulgou um detalhado plano de ação que parte do pressuposto de que, com a saída de cena de Fidel, Cuba evoluirá rapidamente para o regime democrático pluralista que nunca teve.

Minha principal preocupação é que o pensamento que domina a posição oficial sobre Cuba em Washington é obsessivo. Não é um bom começo, qualquer que seja a perspectiva do interesse americano em relação a Cuba, porque independentemente de como ocorrer a transição, Cuba se beneficiará muito do apoio internacional. É preciso ter em conta que um engajamento dos EUA tornaria impossível para um novo governo receber amplo apoio nacional e ser aceito pelos cubanos como legítimo, e não como um marionete dos EUA. Isso não quer dizer que os cubanos sejam anti-americanos ou que eu acredite nas manifestações orquestradas por Havana para denunciar os EUA. Mas em qualquer país há o sentimento de que o governo deve ser do próprio país. Não me parece ser uma idéia difícil de compreender. Mas, em Washington, no caso de Cuba, ela é normalmente esquecida.

O que os EUA deveriam fazer diante de um anúncio da morte de Fidel?

A primeira coisa que os EUA devem fazer é esperar. A segunda, seria pensar em apoio internacional a Cuba em colaboração com outros, e não como alguém que tem o dedão em cima do país.

Morto Fidel, qual é o cenário mais provável da transição? Hoje, o mais provável é que seu irmão Raúl Castro assumirá. Há várias razões para isso, entre elas as posições que ele ocupa no topo das hierarquias militar e política. Eu e você podemos não gostar dele, o governo americano certamente não gosta e é verdade que ele não seria um bom político num sistema eleitoral, mas a elite política e os militares o respeitam. E a decisão inicial sobre a sucessão será tomada por essa elite. A outra razão que faz de Raúl o sucessor de Fidel não é muito diferente da que levou à eleição do cardeal Joseph Ratzinger a papa. Ratzinger é conservador e a maioria da elite da Igreja é conservadora. A elite política em Cuba é ortodoxa e avessa a mudanças rápidas. Como Ratzinger, Raúl é bastante idoso. Ele é cinco anos mais novo que Fidel, que está para fazer 79 anos, e é necessariamente uma figura de transição. A maioria dos membros mais jovens da elite cubana não vê um governo relativamente breve de Raúl como uma ameaça. Ao contrário, eles provavelmente o vêem como uma boa maneira de começar a mudar algumas coisas, mas não tudo. A esse grupo interessa uma distensão lenta e gradual, mais ou menos como a que general Golbery do Couto e Silva orquestrou no Brasil nos anos 70.

Como governará Raúl Castro?

Minha aposta é que ele tentará uma política parecida com o Vietnã e a China, ou seja, abertura da economia, mas não do sistema político. Há vários bons indícios sobre isso. As empresas cubanas mais dinâmicas, com as de turismo e mineração, são controladas por militares aposentados, mais propensos a seguir princípios de mercado do que os civis que controlam empresas. É impossível responder se Raúl conseguiria fazer progresso com essa estratégia, mas a verdade é que quando essa pergunta for feita, ele provavelmente já estará morto e estaremos numa transição mais plena e aberta.

Sob esse cenário, é provável que a América Latina, a Europa e o Canadá busquem um maior engajamento com Cuba. Qual será a posição americana?

Acho que os EUA serão um problema. A Lei Helms-Burton (que sujeita a sanções países que negociam com Cuba) continua em vigor e prescreve o que os EUA podem fazer sob esse cenário. Ou seja, uma transição de mando em Havana para Raúl e o início de um processo de mudança não será considerado suficiente para os congressistas cubanos de Miami, e eles provavelmente defenderam um aperto ainda maior. Ao mesmo tempo, o início de um processo de mudança em Miami poderá levar uma porcentagem não trivial da comunidade cubana na Flórida a reconhecer que há uma transição em andamento, a opor-se a medidas ainda mais restritivas sobre viagens a Cuba, por exemplo, e a passar a advogar mudanças substantivas na política americana em relação à ilha, mais em linha com o que estarão fazendo os europeus, os canadenses, os latino-americanos. Há um contingente crescente na comunidade cubana na Flórida que hoje favorece uma política de maior aproximação, em lugar de maior isolamento. Os exilados históricos estão morrendo. O centro da atividade política da comunidade está mudando para os que chegaram depois dos anos 80. Dez anos atrás, a Fundação Nacional Cubano-Americana de Jorge Más Canosa denunciava qualquer pessoa que viajasse para Cuba. Agora, a fundação quis mandar representantes a uma reunião de oposicionistas que o governo permitiu, há dias, em Havana.

Por que Fidel está permitindo esse tipo de reunião?

Não sei e é difícil de dizer. Ele faz política de sanfona, às vezes fecha, às vezes abre. E isso é verdade também sobre dissidentes políticos. Em geral, a tendência nos últimos 15 anos foi na direção de abertura. Quinze anos atrás era muito difícil falar em oposição organizada em Cuba. Hoje, isso já não ocorre. Mesmo com a grande repressão de dois anos atrás, quando 75 oposicionistas foram presos - e isso foi um horror -, a oposição interna não desapareceu. Porque hoje ela é muito maior do que era.

Alguns estudiosos advertem para o risco de a transição pós-Fidel sair do controle e temem um caos que poderia acabar forçando uma intervenção armada dos EUA, com todas as suas conseqüências, que é provavelmente a última coisa que os militares americanos querem.

Isso seria trágico - e totalmente desnecessário. Se você fosse um oficial americano e tivesse passado pelas experiência do Afeganistão e do Iraque, você quereria agora ocupar Cuba? Claro que não.

O que os países da América Latina deveriam fazer frente a uma transição em Cuba.

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Néstor Kirchner (da Argentina) e outros não deveriam perder oportunidades para lembrar aos dirigentes cubanos como é o sistema político sob o qual operam em seus respectivos países e dizer-lhes que ser criticado por uma imprensa livre e por opositores no Congresso é essencial à democracia e é uma boa prática.