Título: 'O PT trata o BC como inimigo'
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Economia, p. B3

Ex-presidente do Banco Central nos tempos da âncora cambial e do final inglório na desvalorização de 1999, o economista Gustavo Franco mantém intacta a capacidade de pensar provocativamente. Ele diz que o governo do PT usa muito mais a âncora cambial do que o de Fernando Henrique Cardoso, e pede que transfira a pergunta para o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), sobre se há defasagem cambial. De forma contundente, acusa o governo de Luiz Inácio Lula da Silva de tratar o BC como inimigo, deixando a instituição na defensiva. Esta é a razão, para Franco, pela qual a equipe econômica e o BC evitam os riscos, aferram-se aos instrumentos tradicionais e não exploram soluções para questões complexas que podem estar por trás da resistência inflacionária, como a volatilidade do câmbio, a estrutura da dívida pública e preços administrados. A seguir, a entrevista:

O Brasil voltou aos tempos da âncora cambial?

O uso do câmbio como instrumento antiinflacionário é algo que se vê desde o início deste governo, que começou com o câmbio na faixa de R$ 3,70, R$ 3,60. Desde então, o câmbio só fez cair, até chegar onde estamos, batido num mínimo de R$ 2,37. Ou seja, uma queda acumulada de 30 e tantos por cento, talvez até mais, de 15% ao ano. Nos tempos da chamada âncora cambial, o câmbio desvalorizava 8% ao ano. Em matéria de usar o velho remédio, este governo fez muito mais do que o governo do qual participei. A apreciação no começo do real, no qual o dólar de R$ 0,97 para R$ 0,83, foi um pouco superior a 10%, minúscula perto do que este governo fez. Mas não vamos exagerar nas analogias. É preciso ter clareza que em ambas as situações o efeito foi relevante para a inflação. E as circunstâncias eram diferentes. No no início do real era a hiperinflação.

E como o sr. vê a inflação hoje?

Acho que iniciamos um novo capítulo na inflação brasileira em 1999. Se você olhar de 1999 até hoje, a inflação média anual no IPCA deve ser 7% a 8%, no IGP-M deve ser pouco menos do dobro disso, uns 12% ou 13%. O que é curioso é que tivemos dois anos, 1997 e 1998, com uma inflação na faixa internacional, de 0% a 2%, e desde que passamos para o regime de metas com flutuação cambial, parece que a economia está vivendo um regime diferente, com uma inflação maior, e acho isto um grande enigma. No Plano Real, ninguém foi ingênuo de imaginar que a inflação se combate só com instrumentos convencionais. É preciso ter os fundamentos corretos, mas às vezes uma cotovelada aqui e ali é muito importante e neste momento não estamos vendo nada disto. O remédio convencional funciona, mas é mitigado por vários fatores.

O sr. tem pistas neste enigma?

Uma bastante óbvia é a produtividade na indústria. Até 1999, a taxa de crescimento da produtividade foi fenomenal, na faixa de 7% a 8% ao ano. Isto cria um viés deflacionista nos preços industriais. A partir de 1999, ela está meio zerada. Sumiu o viés deflacionista, e isto somado a pressões salariais que tem a ver com o IPCA acaba criando um viés inflacionário. O impacto da produtividade é pequeno para uma inflação enorme como tínhamos antes do real. Mas, para o Brasil de hoje, é relevante.

O sr. vê outras explicações para a inflação atual?

Outro elemento inflacionário muito direto e que afeta principalmente a transmissão de queda no câmbio para queda na inflação é a questão da volatilidade cambial. A relação entre a inflação e o câmbio sempre foi muito ordenada, e a passagem para o regime de flutuação rompeu o relacionamento. Para quem tem insumos importados ou dívida em dólares, importa não só a variação, se caiu ou subiu, mas importa a volatilidade (o quanto o câmbio oscila). O cara que tem dívida em dólar sabe que num dia pode estar feliz, porque a moeda americana desvalorizou, no outro, pode estar quebrado. Portanto, volatilidade é um risco importante que às vezes o sujeito simplesmente não pode incorrer.

E como os empresários reagem?

Logo percebem que o risco se transforma em custo, ou porque têm de construir um colchão para enfrentar as flutuações, ou porque têm de ir no banco comprar um hedge. E percebem que o hedge, como qualquer seguro, não é de graça. É tão mais caro quanto mais intensa é a volatilidade. E geralmente as empresas fazem hedge na hora errada, quando ficam com medo, quando o câmbio já está muito alto. Fazem na posição errada, o câmbio cai. Perdem duplamente e ficam duplamente irritados. A questão é relevante para explicar porque, nos últimos dois anos, a taxa de câmbio caiu 30% e a inflação acumulou 15%.

O sr. acha que o governo está atento a esta questão?

Às vezes, você vê o BC trabalhando no sentido oposto. A política de redução da dívida pública em câmbio, com vistas a diminuir a alegada vulnerabilidade fiscal das contas públicas, resulta em retirar matéria prima usada para confecção de hedge (os títulos indexados ao câmbio), o que torna o risco cambial uma coisa pavorosa para todos. O BC tem de mostrar que não gosta de volatilidade. Do ponto de vista técnico, intervenções com opções de compra e venda do dólar, como fez o México, são melhores para conter a volatilidade que os swaps reversos. Outra medida importante é a volta dos leilões de spread (quando o BC obriga as instituições a abrir preços para compra e venda da moeda simultaneamente). Hoje, não se sinaliza nada e qualquer ventinho mexe muito no câmbio.

Há também quem culpe os preços administrados pela resistência da inflação.

Acho que tem um certo equívoco na forma como as pessoas olham, porque ficam achando que o que tem ali é um problema de indexação. Não é isto. O que tem é aquilo, que se fosse provocar, chamaria de populismo regulatório. O governo decide que o concessionário do serviço público vai fazer determinada coisa no terreno da concessão que ele, governo, não faria porque dá prejuízo. É uma concessionária de estrada que vai construir um acesso para uma comunidade, ou uma companhia telefônica que vai universalizar o serviço, indo para áreas não lucrativas, obrigado pela agência reguladora. Mas, como não há almoço grátis, o custo daquilo vai para o preço, para a tarifa. Minha sensação é de que o volume de subsídios cruzados cresceu muito em todos os preços administrados.

E a estrutura da dívida pública, é causa de inflação?

Sem dúvida. São centenas de bilhões no overnight, na indústria de fundos DI, e os investidores, ao contrário do que ocorre em outros países, tem um aumento na riqueza quando a taxa de juros sobe. A equipe do Real tinha claro de que muitas instituições da política monetária precisavam ser reconstruídas, às vezes construídas do zero. O Brasil não era igual à Nova Zelândia (primeiro país a adotar o regime de metas de inflação) no dia seguinte à estabilização, nem 5 anos depois, nem é hoje. Portanto é natural que a política da Nova Zelândia, de metas de inflação, não seja apropriada para a gente. É preciso olhar o que o Brasil tem de singular, que vem do passado, das nossas tradições, e trabalhar estes assuntos, que às vezes transcendem o BC. É preciso tirar um pouco da ênfase do overnight.

Falta criatividade ao BC?

Não queria adjetivar a política do BC. É muito difícil ser BC no governo do PT. O BC na gestão do PT parece um inimigo do governo. Toda hora é criticado, é objeto de imensa desconfiança e de ataques de toda ordem, não só à política, mas às pessoas. E nestas condições, o BC funciona de uma forma muito mais defensiva do que funcionaria em condições normais. E, portanto, isto talvez explique um pouco da posição mais convencional do BC no governo PT, do que talvez fosse em um outro governo que olhasse o BC de forma diferente.

Uma das principais críticas ao BC é a taxa de juros altíssima, que já vem do governo de FHC.

A taxa real é muito alta, a maior do mundo, desde muito tempo. A gente não percebia o problema talvez porque, antes de 1994, o sintoma mais visível desta infecção era a hiperinflação. A infecção mudou, tem um tamanho menor, tem uma gravidade menor, e hoje o sintoma mais visível é o juro. Não dá para olhar para a taxa e achar que é normal assim como não dava para olhar para a inflação de 30% ao mês e achar que era normal. O que antes produzia hiperinflação, e hoje produz juro alto, tem a ver com as finanças públicas e o crédito público, que estão muito ruins. O governo não enxerga isto. Após o anúncio do PIB, houve pronunciamentos de que agora vai aumentar os gastos públicos para reativar a economia. Olha que besteira. Se tem alguma coisa errada, é o excesso de gasto público, que está produzindo desarrumação nas contas públicas, no crédito público, sendo esta a principal razão dos juros altos. Vai aumentar o gastos públicos, vai piorar a situação.

E a Selic tem de cair?

Pondo o problema nos termos que está posto, na fórmula da meta da inflação, é só fazer conta - é um modelito econométrico e uma fórmula de piloto automático. E aí, você fazendo as contas, pode ser até que suba mais. Agora, esta é a fórmula possível nas circunstâncias principalmente políticas que o BC vive hoje.