Título: Mulheres que batem. E homens que calam
Autor: Laura Diniz
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Cidades, p. C6

"Eu sou cricri", assume um locutor de rádio, de 34 anos. A cicatriz de vários pontos no joelho é uma das marcas da espiral de agressões em que se transformou seu casamento. Uma implicância dele por algo desarrumado em casa aqui. Uma cobrança por ciúme dela acolá. Numa das discussões, de faca em punho, a mulher avançou sobre ele. "Era pequena, mas uma valentia", lembra o locutor, separado desde 2002, que não perde o bom humor: "Agora só namoro mulher de 1,80 metro." Apesar da brincadeira, o problema é sério e vem crescendo. A agressão física praticada por mulheres contra homens ainda é assunto tabu, mas se torna cada vez mais visível.

"Há duas décadas, essa mudança se tornou flagrante no Brasil. Antigamente, as agressões das mulheres eram muito pouco evidenciadas, inclusive as verbais, muito mais freqüentes que as físicas", diz o psiquiatra Luiz Cuschnir, do Centro de Estudos da Identidade do Homem e da Mulher (Iden). "Até algum tempo atrás, era impensável para uma mulher dizer, por exemplo, que a porta da rua é serventia da casa, para revidar uma reclamação do marido."

VERGONHA

O locutor não procurou a polícia para denunciar as ocasiões em que a mãe de suas duas filhas lhe atirou copos de vidro, ferro de passar roupa quente e outros objetos ao alcance nos momentos de fúria. Também não denunciou os tapas e os arranhões nem um beliscão na mão que tirou sangue. "Não pensei em dar parte porque é a mãe das minhas filhas. Procurei parentes dela, pedi ajuda, mas não adiantou. Acho que ela precisa se tratar." Para os amigos, não teve coragem de contar. "Me senti constrangido, era complicado me olhar no espelho."

Também por vergonha um operador de telemarketing de 26 anos ficou calado durante meses sobre as agressões da mulher. Separou-se ao saber que ela estava grávida de outro. Os problemas do casamento só vieram à tona na organização não-governamental (ONG) Pró-Mulher, Família e Cidadania, que oferece apoio jurídico e psicológico a vítimas de conflito e violência familiar.

"Ficaria meio estranho um homem ir à delegacia para dizer que a mulher bate nele. É vergonhoso demais, pegaria mal", diz o operador de telemarketing. Receio de apanhar, contudo, ele diz que nunca teve - e se orgulha disso. "Nunca me senti intimidado porque ela é mais fraca. Eu me defendia segurando os braços dela, puxando o cabelo para trás. Ela nunca chegou a me machucar", garante.

PERFIL

As mudanças no comportamento de homens e mulheres percebido pelo psiquiatra Cuschnir no dia-a-dia do consultório e no Iden ainda não são perceptíveis nas estatísticas policiais. "O homem se sente constrangido de procurar o plantão policial para denunciar uma mulher por agressão", confirma a delegada Márcia Salgado, dirigente do setor técnico de apoio às Delegacias de Defesa da Mulher (DDM). "Alguns vão às DDMs porque preferem relatar o caso para uma delegada a procurar um delegado."

As DDMs não calculam o porcentual de queixas feitas por homens entre as milhares de denúncias de mulheres, mas, segundo a delegada, o índice não chega a 1%. "Eu trabalhei na periferia de 1988 a 2001 e me lembro de ter atendido, pessoalmente, apenas três casos assim".

Segundo Márcia, na grande maioria das vezes em que a mulher bate, ela está revidando uma agressão do homem. "Como a mulher sabe que não tem a mesma força física, é difícil se sentir encorajada a revidar. Por isso, quase sempre arremessa objetos", afirma a policial.

CONTEXTO

Para Cuschnir, a agressão faz parte de um contexto maior de violência conjugal. "A mulher agride por quê? Porque foi agredida antes? A agressão dele não pode ser reação a uma agressão dela? É aquela velha história do que veio primeiro, se foi o ovo, ou a galinha", analisa. "Muitas vezes, o casal não tem consciência de que está se agredindo. Sempre há coisas que um deseja e o outro não pode suprir." Após o revide, de acordo com o psiquiatra, a traição masculina é o segundo motivo mais freqüente de agressão.

No Pró-Mulher, o objetivo é justamente rever a relação de vítima e agressor. O locutor de rádio, por exemplo, assume que seu comportamento ajudou a provocar as reações da mulher. "Gosto das coisas no lugar, gosto de horário. Ela não, e eu pegava no pé dela." Ele afirma ter "perdido a cabeça" apenas duas vezes. Em uma das ocasiões, empurrou a mulher; em outra, deu-lhe um tapa. "Me arrependo muito, mas não deu para segurar", alega.

No Pró-Mulher, o locutor aprendeu que os conceitos de certo e errado são relativos e paciência é fundamental para os casais superarem problemas como o que ele viveu. "A planta precisa de água. Experimenta jogar água quente nela para ver o que acontece. No casamento, é assim também. Tem de segurar o impulso e agir de cabeça fria."