Título: O enigma da China
Autor: Sergio Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

A emergência da China é um dos temas que suscitam hoje o mais vivo interesse, inclusive entre nós. Para o Brasil, a China é a um só tempo um parceiro estratégico, um concorrente temível e um verdadeiro enigma. A China é o quarto mercado para as exportações brasileiras, à frente da Alemanha, do Japão e da França. O fluxo de comércio está perto de US$ 10 bilhões. Mais de uma dezena de empresas brasileiras, entre as quais a Embraer, investiram no grande país asiático, enquanto um número um pouco superior de empresas chinesas está presente no Brasil, em vários setores, entre os quais o de informática. A cooperação científica e tecnológica avança a passos firmes, em domínios de ponta, como a construção de satélites. Os dois países coincidem em muitos temas da agenda internacional, como o reforço do multilateralismo, a construção de uma ordem multipolar e a mais estreita articulação entre os países de peso médio.

Mas a China é também um temível concorrente. Não se trata apenas de sua reconhecida competitividade nos segmentos de mão-de-obra barata. Na verdade, a China preparou-se para exportar em diferentes níveis da cadeia produtiva. A indústria têxtil é um bom exemplo. Em 2004, empresas chinesas adquiriram 80% das máquinas fabricadas no mundo desenvolvido para a produção de tecidos e hoje controlam não apenas os segmentos à base de mão-de-obra barata, mas também os de ponta.

A China é, por fim - para nós, como para muitos no mundo -, um enigma difícil de decifrar. Suas políticas de desenvolvimento são objeto de interesse e de debate em vários foros. O Brasil, por sua vez, descobriu nos anos 1990 duas realidades inelutáveis: a inflação não é um tumor benigno, mas maligno; o mundo exterior existe. Concluímos, como muitos já haviam feito antes, que não era possível conciliar crescimento sustentável com elevada inflação; e que a abertura da economia aos investimentos e ao comércio exterior era indispensável para assegurar o acesso da população a produtos e serviços de melhor qualidade e preço. Em vez de continuar a perseguir atalhos ou mágicas heterodoxas, o Brasil passou, enfim, a construir os seus caminhos com base na estabilidade da moeda, em mais amplo intercâmbio com o exterior e na consolidação da democracia. Enfim, o Brasil se tornava um país estável e normal. Entre 1984 e 1994, conhecemos quase uma dezena de ministros da Fazenda. A partir de 1995 tivemos apenas dois.

Convencemo-nos de que era preciso respeitar as regras básicas do funcionamento da economia de mercado, mas, como muitos, mantivemos um debate, na maioria das vezes saudável, entre duas variantes de política: entre o financiamento do desenvolvimento primordialmente via ingresso de recursos externos e os que enfatizam a geração de excedentes comerciais; entre os chamados monetaristas, mais sensíveis aos mercados financeiros, e os "desenvolvimentistas", mais próximos do setor produtivo.

Estas duas correntes permearam, de igual modo, partidos e governos. Hoje, todos acompanham com interesse a emergência da China. Mas cada um faz a sua leitura. Para a corrente mais ortodoxa, se é que assim pode ser denominada, o êxito chinês vem do mercado, da privatização, da abertura aos investimentos e ao comércio exterior. Para os desenvolvimentistas, o sucesso decorre, para além dos bons fundamentos da economia, do planejamento, da presença do Estado no direcionamento do investimento estrangeiro, na política industrial e na administração do câmbio.

Os chineses, com boa dose de pragmatismo, superaram as ambigüidades e dualidades que efetivamente mantêm, afirmando que se encontram na transição para uma economia socialista de mercado (sic), na melhor tradição de Deng Xiaoping, para quem não importava a cor do gato, desde que apanhasse o rato. Nós não conseguimos ainda realizar a síntese de nossas diferenças. Se é verdade que a experiência chinesa talvez possa iluminar e trazer subsídios ao nosso debate, também é verdade que as condições com que opera a China são em boa medida únicas. Basta recordar que sua taxa de poupança é superior a 40% do PIB (a nossa é da ordem de 20%) e sua carga fiscal é de 16%, enquanto nós pagamos em tributos cerca de 35% de tudo o que produzimos. Sem falar nos avanços tecnológicos e na quase inesgotável reserva de mão-de-obra barata.

O que chama a atenção na China, contudo, mais do que a solidez de seus fundamentos econômicos ou suas enormes vantagens comparativas, é o fato de o país, não obstante sua profissão de fé socialista, manifestar agudo entendimento do funcionamento dos mercados mundiais: a prioridade às exportações, a simbiose com os Estados Unidos (pela qual a China financia o déficit norte-americano, enquanto os Estados Unidos alimentam o crescimento da indústria chinesa), a estratégia lúcida de agregação de valor e de construção da imagem do país. Em 2002, empresas chinesas investiram US$ 2,8 bilhões na compra de empresas na Europa. Transferiram a produção para a China, mas preservaram a pesquisa, a marca, o marketing e a distribuição nas empresas que haviam adquirido, numa clara percepção dos instrumentos necessários para a incorporação de valor.

A emergência da China parece irrefreável. Ela traz oportunidades, alguns riscos a seus parceiros e relevantes deslocamentos na geometria do poder mundial. Escolhemos - a meu ver, corretamente - o caminho da parceria. É preciso que nos preparemos para enfrentar os riscos. A experiência chinesa merece ser avaliada, ainda que seja difícil replicar o seu modelo em realidades tão distintas quanto a latino-americana e mesmo a brasileira. Mas o ensinamento mais claro talvez seja a combinação de bons fundamentos da economia com a compreensão do funcionamento dos mercados e a capacidade de tirar proveito, com pragmatismo, das oportunidades da globalização. Neste campo já fizemos progresso, mas teremos de avançar mais.