Título: O grande culpado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2005, Notas & Informações, p. A3

A começar do presidente Lula, o governo parece acometido da síndrome da imunodeficiência: não só não consegue criar anticorpos para defender a administração direta e as estatais das investidas corruptoras de seus aliados, como não consegue reunir coragem para tomar as iniciativas sem as quais a crise política, na melhor das hipóteses, se tornará crônica, e, na pior, se transformará em crise institucional. Examine-se a sua conduta em seguida à publicação da entrevista em que o deputado Roberto Jefferson acusa o PT, na pessoa de seu tesoureiro Delúbio Soares, de pagar um "mensalão" de R$ 30 mil aos deputados do PL e PP, da base aliada na Câmara. Começou com a "reação instintiva" do PT em uma nota dizendo que as denúncias "não têm o mínimo fundamento na realidade". E terminou com a assombrosa declaração - decidida em longa reunião no Palácio do Planalto, com a participação de Lula - feita por um contrafeito ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, de que "não há nenhuma acusação que relacione o pagamento de parlamentares ao governo. A denúncia refere-se a um hipotético pagamento de um partido a parlamentares de outros partidos".

A naturalidade com que o governo desdenha da inteligência alheia é coerente com a estudada indiferença com que a sua principal figura contempla a bomba que explodiu debaixo dos seus pés. Na manhã da segunda-feira, enquanto a opinião pública tratava de digerir a incriminadora entrevista do chefe do PTB, e o PT escondia Delúbio da imprensa, o presidente da República lançava em São Bernardo um programa de financiamento de máquinas de costura. À tarde ficou uma hora com o craque Ronaldo. Vem de longe a prioridade para o comício diário pela reeleição, seja qual for a gravidade da crise do dia. A que culminou com a entrevista de Jefferson chegou onde está por culpa exclusiva do presidente. Se não da forma descrita por Jefferson, Lula estava farto de ouvir falar da compra de políticos.

Em maio de 2004, o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo, contou-lhe que pessoas ligadas ao governo ofereceram mesada de R$ 40 mil e bônus anual de R$ 1 milhão a dois deputados federais para que trocassem o PSDB por uma legenda aliada. Lula não se abalou. Em setembro, com base em informações atribuídas ao ex-ministro das Comunicações Miro Teixeira - que diz que Jefferson contou-lhe coisas mais graves do que o "mensalão" -, o Jornal do Brasil levantou a suspeita agora dada como fato por Jefferson. A corregedoria da Câmara abriu inquérito e o arquivou em 2 dias, a pretexto de que Miro desmentira a notícia. Lula foi mantido a par do caso.

Em março último, admitiu o Planalto, Jefferson falou "genericamente" do assunto ao presidente - que se satisfez com as explicações de auxiliares, de que se tratava de denúncia velha e não comprovada. Tivesse Lula um mínimo de competência para exercer o comando do seu governo, o mal já teria sido extirpado. E pensar que, entre a nota desacreditada do PT e a risível alegação do ministro Aldo, o governo, por incrível que pareça, não desistiu de sabotar a CPI dos Correios.

Diante do clamor da opinião pública, o PT passou ostensivamente a apoiá-la - por imposição de Lula e contra a opinião de Genoino e Mercadante que insistiam na "operação abafa". Mas defende uma simultânea CPI do "mensalão" para tirar os holofotes da outra, que tanto teme porque visa às entranhas da administração. Claro que a segunda investigação seria um despropósito: o protagonista central em ambos os casos, ora como acusado, ora como acusador, é o mesmo Roberto Jefferson. A CPI dos Correios inevitavelmente vai bater no caso do "mensalão".

A falta de comando do governo só não provocou ainda os efeitos mais temidos, com a transformação da crise política em institucional, graças ao comportamento exemplar da oposição. Desde a primeira hora, o PSDB repudiou qualquer coisa parecida com o quanto pior, melhor, cumprindo a recomendação do ex-presidente Fernando Henrique de "não botar fogo no paiol". Se o próprio governo é capaz de se desestabilizar, raciocinaram, a última coisa que os brasileiros podem querer é uma oposição que o ajude a pôr em risco a normalidade institucional. Mas o presidente Lula não pode depender apenas da lucidez de seus adversários para completar sem traumas insuperáveis a travessia até o fim do mandato. Urge que ele encare de vez os problemas que o assombram - e pelos quais só tem a si mesmo a culpar -, assumindo o comando do seu governo para coibir as práticas fisiológicas que conduziram a esse desastre.