Título: A crise boliviana
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2005, Notas & informações, p. A3

Durante a Assembléia Geral da OEA, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia, José Ignacio Siles, pediu aos participantes que ¿apóiem a pessoa que, de acordo com os procedimentos constitucionais de sucessão, assuma a presidência¿ de seu país. A OEA, o Mercosul e a União Européia, que já exerceram papéis decisivos na solução pacífica e constitucional de recentes crises bolivianas, desta vez nada podem fazer para acalmar os ânimos em La Paz. O que há na Bolívia é a mais completa anomia e a mais desenfreada desordem civil. A Igreja, que aceitou mediar o conflito, não tardou a perceber que seus bons ofícios estavam limitados pela natureza e escala da mazorca: se já seria difícil conciliar as posições dos partidos representados no Congresso, era praticamente impossível chamar à razão os movimentos sociais e étnicos que transformaram a Bolívia em terra de ninguém. Mas a Igreja persiste em seu esforço de mediação.

Em março, o presidente Carlos Mesa renunciou à presidência, como último recurso para ganhar tempo e conseguir obter um mínimo de apoio político, já que sabia que o Congresso não poderia aceitar sua demissão. O novo pedido de renúncia já não tem aquele sentido. Mesa chegou ao fim da linha. Não tem condições de governar o país e só lhe restava transferir a administração da crise para o Congresso, que terá de decidir quem sucederá ao presidente demissionário e em que condições.

Se a presidência for transferida ao primeiro da linha de sucessão, o senador Hormando Vaca Díez, os conflitos podem se agravar, uma vez que o presidente do Senado é antagonizado à direita e à esquerda. Se o sucessor for o presidente da Câmara, Mário Cossío, não se deve esperar resultado melhor. A solução constitucional seria a posse do presidente da Corte Suprema.

Mas isso não removeria a causa da crise, que é a divisão da Bolívia em pequenos núcleos ¿ ideológicos, étnicos, de classe, sindicais e até por povoados e quarteirões ¿, cada qual se sentindo no direito de impor suas reivindicações por meios violentos e à margem das instituições do Estado.

Neste quadro, a estatização dos recursos naturais, em especial o petróleo e o gás, a convocação de uma Assembléia Constituinte e a autonomia dos Departamentos (Estados) não passam de palavras de ordem, uma vez que não existe consenso mínimo a respeito de qualquer tema.

Todos estão contra todos e nessa luta vale tudo. As estradas estão interrompidas, as principais cidades foram isoladas, em La Paz as manifestações de rua são marcadas por explosões de bananas de dinamite, que os mineiros arremessam contra a polícia, que responde com bombas de gás lacrimogêneo. Com esse pano de fundo, é apenas natural que a expressão mais comum que se ouve nas ruas e nos gabinetes seja ¿guerra civil¿.

A Bolívia, entre a sua independência em 1825 e a redemocratização, em 1982, foi um país recordista em golpes de Estado. Foram mais de 200, alguns deles vitoriosos por uns poucos dias. Houve até golpe de Estado em que os sindicatos mineiros sobrepujaram militarmente as Forças Armadas. Mas nas duas últimas décadas, principalmente depois que um dos ditadores do passado se tornou presidente constitucional pelo voto, parecia que a Bolívia havia encontrado o caminho da normalidade democrática.

Os acontecimentos dos últimos quatro anos ¿ dois presidentes foram expelidos por incontroláveis manifestações de rua ¿ mostram que essa experiência de democracia estava destinada a ser efêmera.

E a solução da crise boliviana não parece estar no Congresso, até porque os movimentos sociais e étnicos têm objetivos próprios que não aceitam negociar. Assim, é pouco provável que se encontre a melhor solução, ou seja, que a Igreja consiga promover uma longa trégua política, dando tempo para que as instituições se fortaleçam e os movimentos sociais, étnicos e separatistas arrefeçam suas reivindicações.

O que parece mais provável é que a Bolívia retroceda à fase de intervenções militares, a pretexto de restaurar a ordem.