Título: 'Não foi caricatura, mas real e terrível'
Autor: Ubiratan Brasil Marco Justo Losso
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

O historiador Joachim Fest foi extremamente meticuloso na reconstituição dos fatos que rodearam os dias de Adolf Hitler, especialmente os derradeiros. Tanto em No Bunker de Hitler, como na biografia do ditador alemão, ele não pretendeu fazer uma investigação científica, mas apenas uma exposição sobre bases científicas. Daí sua decisão de não incluir no texto detalhes que, apesar de instigantes, padeciam de uma comprovação segura. É o caso, por exemplo, das diversas versões sobre a morte de Hitler. Segundo ele, há testemunhas que juravam que foi por envenenamento. Para outros, porém, foi com um tiro na boca. Houve até quem dissesse que o ditador disparou na têmpora esquerda, embora não fosse canhoto. Joachim Fest prefere debruçar-se sobre o sentido organizador do povo alemão, isso sim uma chave para a ascensão do nazismo. Segundo ele, como os alemães são tradicionalmente uma nação organizada, a aplicação desse talento no uso sem falhas do aparato militar trouxe conseqüências terríveis. Mesmo assim, não se pode pensar em culpa coletiva, como Fest explica na continuação da entrevista. O senhor vê algum perigo na representação de figuras históricas reais? Não. Eu deveria?

De jeito nenhum? Não. É necessário apenas que elas sejam corretamente representadas, não é? Ou pelo menos que se possa justificálas de acordo com o que é correto historicamente. Isso nem sempre se sabe. Ou não se pode precisar o que aconteceu exatamente. Mas neste caso específico, o peso das figuras já está claramente dividido.

Para o senhor, como foi a interpretação de Bruno Ganz de Hitler? Excelente (pausa). Ele foi, de longe, o melhor intérprete de Hitler que eu já vi. Melhor que Alec Guinness, que Anthony Hopkins, melhor que Charles Carlyle e tantos outros. Com certeza, Bruno Ganz foi o melhor. Ele estabeleceu um novo patamar para a representação de Hitler. Todos os intérpretes anteriores do ditador eram uma forma de caricatura. Isso veio a partir de Charles Chaplin em O Grande Ditador. Todos acabaram tendo um pouco de Chaplin. E Hitler acabou virando uma caricatura, mas ele não foi uma caricatura. Ele foi uma pessoa real e absolutamente terrível.

Por que o filme não mostra a morte de Hitler? Porque nós não sabemos como foi sua morte. Quando se tem alguma prova, tudo bem. Existem cinco diferentes versões de como Hitler morreu. Seis até. E são estas: ele teria atirado em si mesmo com uma pistola na têmpora, ou no coração, ou na boca. Há uma versão de que ele teria tomado veneno. Outra de que ele teria tomado veneno e ao mesmo tempo atirado em si mesmo. E, por fim, há uma versão de que um auxiliar seu teria dado o disparo. Não sabemos nada a respeito. Não se pode mostrar no filme como ele se matou. E se nós escolhêssemos uma destas versões e a representássemos, então viria imediatamente um outro crítico e diria que Wim Wenders afirmou que há um erro no filme. E então Wenders viria imediatamente e diria que representamos algo que não pode ser provado. Definitivamente, isso não poderia ser feito. Eu não teria concordado com isso porque devemos nos ater às constatações históricas e não inventar alguma coisa.

O peso central do filme encontrase na responsabilidade coletiva? Não. Por quê? O povo alemão, o que ele poderia fazer? Isso só se aplica a alguns personagens. Culpa coletiva ou responsabilidade coletiva poderia ser atribuída talvez a uma parte dos oficiais dos altos rankings. Eu sou totalmente contra o conceito de culpa coletiva. Culpa é sempre algo que se tem individualmente e nunca em um grupo de pessoas juntas. Isso é muito raro. E um povo ter sido coletivamente culpado, isso não existe.

E qual fascinação esses acontecimentos exercem ainda hoje? As pessoas se interessam por isso porque elas querem saber como aconteceu. Os motivos são diferentes para cada um. Alguns que viram o filme ficaram comovidos, outros muito impressionados. Eu recebi cartas de pessoas que disseram que choraram ao sair do cinema. São todas reações possíveis. Eu não sei se pessoas também riram. Ah, sim, um chegou a me dizer que riu quando saiu porque achava que tanta estupidez não fosse possível. Bom, isso existe também, mas trata-se de casos isolados. A maioria ficou muito comovida ou, no mínimo, refletindo muito.

O senhor imagina a possibilidade do aparecimento de um novo Hitler nos dias de hoje? Não, no momento não. Nem aqui na Alemanha nem mesmo na Europa. Talvez em outros lugares, sim, mas... Bom, temos alguns que ainda governam seus países como ditadores. E não são poucos. Mas não na Alemanha nem na Europa. Isso pode mudar, eu não sei, mas no momento não.