Título: O mensalão e os jogos amorosos da governabilidade
Autor: Renato Lessa
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Aliás, p. J3

Corria o ano de 1844 e o governo do Império do Brasil era dirigido pelo insígne ministro Alves Branco, o visconde de Caravelas. Prócer do Partido Liberal, Alves Branco tornou-se célebre pela política tarifária que adotou em seu governo, elevando impostos sobre produtos importados, criando condições propícias para um ensaio do que no século seguinte haveríamos de designar como "substituição de importações". A história é conhecida e vem a dar nas iniciativas modernizadoras de outra figura nobiliárquica, o barão de Mauá. Tudo terminou mal, já que tais iniciativas acabaram arruinadas pela reversão da política protecionista, por parte de outro governo, já na altura, assolado por fundamentalistas do livre-mercado. Embora célebre, a contribuição de Alves Branco à história pátria vale como símbolo e como razão para lamentar oportunidades perdidas. No entanto, o contributo do personagem ao processo civilizatório brasileiro não se limitou ao gesto interrompido. Menos conhecidos, dois outros legados inscreveram-se de modo indelével nos hábitos políticos do país. Refiro-me a duas doutrinas da lavra do ministro, fundamentais para elucidar a natureza do regime representativo nos trópicos.

A primeira das doutrinas refuta a percepção de que as surras eleitorais que os governos, na altura, invariavelmente davam na oposição resultavam de violências e fraudes. Alves Branco assegurava que tal seria o caso das "maiorias artificiais", sustentadas no princípio da "lealdade por compressão". Nosso liberal antepassado estava convicto de que o caso brasileiro teria outras características: aqui são as "maiorias de amor" que sustentam os governos, definidas a partir de um princípio de "lealdade por gratidão".

A segunda doutrina estabeleceu que os funcionários públicos devem lealdade ao governo que servem, e não abstratamente ao Estado. O que se segue é uma edificante seqüência lógica: se os funcionários públicos devem lealdade ao governo e se os governos são materializações de orientações partidárias, logo a lealdade devida é ao partido que ocupa o governo.

A genial combinação entre amor e lógica serve como refutação de velhas crenças românticas. À parte isso, procurava desfazer a péssima impressão causada pelas eleições de 1841, nas quais os liberais praticamente erradicaram os conservadores, nas tristemente célebres "eleições do cacete", conduzidas pelo liberalérrimo Antonio Carlos Ribeiro de Andrada.

O conteúdo amoroso dessa política dizia respeito à relação entre o governo e, digamos, sua "base aliada" parlamentar. Em tempos imperiais, e também nos idos da Primeira República, a obtenção da aquiescência amorosa dos representantes fundava-se em duas dimensões: a limitação do número dos representados e a coação e fraude no alistamento e no processo eleitorais. Nesse sentido, pode-se dizer que o problema da cooperação entre Executivo e Legislativo se resolvia na própria origem do processo representativo, isto é, no próprio ato eleitoral. Nos tempos de Campos Sales, no início da vida republicana, eventuais vitórias de deputados não-oficiais eram tratadas pela célebre "guilhotina Montenegro", que cuidava do não-reconhecimento de seus diplomas eleitorais. De Campos Sales tudo pode ser dito, exceto que ocultava as intenções de seus atos políticos: de seu próprio punho reconheceu que, na dúvida sobre a validade de diplomas eleitorais, a presunção de legitimidade pertence, por princípio, ao candidato da situação.

Esses foram tempos com poucos eleitores e marcados por rígido controle, por parte dos governos - federal e estaduais - sobre o processo eleitoral. Em tempos democráticos, nos quais o tamanho do eleitorado e a multiplicação dos atos eleitorais, ambos associados à forte competição político-partidária, as formas de obtenção de aquiescência amorosa dos representantes não podem depender da coação e da fraude, exercidas sobre os representados.

Ainda que a criminologia eleitoral siga sendo alimentada por episódios tais como os ocorridos nas eleições em Campos, no Rio de Janeiro, há no país poderosos impedimentos à sua generalização: modernização do processo eleitoral, fiscalização da Justiça Eleitoral, imprensa e, é claro, os adversários. Dada a impossibilidade do controle sobre os representados, a operação dos princípios do amor e da gratidão deve incidir sobre o corpo dos representantes. Nos tempos que correm, as doutrinas do visconde de Caravelas, sob pena de inadaptação, devem apurar seu foco e considerar o que se passa no âmbito das relações entre Executivo e Legislativo. Esse é o endereço das combinações entre amor, gratidão e lógica.

Os parlamentos em geral sustentam-se em um ato ficcional básico, segundo o qual um corpo diminuto de seres humanos constitui-se como amostra e miniatura dos demais, para fins de deliberar a respeito do interesse público. O aspecto ficcional é evidente, dado que não é da natureza de nenhum contingente humano apresentar-se politicamente de modo amostral. A não ser que se prove o contrário, trata-se de um artifício que, mais do que permitir que o público em geral fale através de seus representantes, na verdade constitui-se como impedimento para que ele fale de forma direta.

Não é o caso de, aqui, revisitar os pensadores clássicos na matéria, mas é importante lembrar que para eles o princípio da representação constituía-se como um filtro, por meio do qual os poucos e bons decidem pelos muitos e não tão bons assim. Os segredos do governo representativo, portanto, residem muito mais nas relações entre os representantes e o governo do que entre aqueles e seus supostos representados. Não há nisso nenhum absurdo. O que espanta é ainda falarmos em "representação".

Na experiência brasileira dos últimos 40 anos, essa característica geral acabou por ganhar contornos próprios. Durante os anos autoritários, o Congresso permaneceu aberto, com algumas interrupções, é certo. Mas o fato é que, embora limitada, a atividade político-partidária ficou confinada ao âmbito congressual. Pelo arbítrio e pela inércia, os nexos entre a vida congressual e o mundo exterior tiveram menos peso do que as escaramuças estritamente institucionais. Mesmo quando o Congresso vocalizou o sentimento geral de repulsa ao regime autoritário, a forma insulada acabou por domesticar a substância democratizante. É um Congresso devotado a sua forma e a seu insulamento, pois, que deflagra a transição à democracia e, em seus primeiros anos, estabelece com o Executivo uma relação amorosa e monogâmica. Do ponto de vista da maioria congressual, o que importa é obter o máximo de acesso e controle sobre recursos e posições na máquina governamental; do ponto de vista do governo, importa usufruir da "lealdade por gratidão". Os idos do governo Sarney foram, nesse aspecto, notáveis: a captação de apoio parlamentar, por parte do governo, revestiu-se em privilegiado laboratório para observarmos as artes do chamado "presidencialismo de coalizão". Ali esteve em jogo não apenas a duração do próprio mandato do presidente em exercício, mas, o que é mais grave, a própria condução do processo constituinte.

Em outros termos, as artes do amor inscreveram seus sinais no desenho constitucional do País, dada a natureza congressual da Assembléia Constituinte, e não se limitaram a resolver questões ordinárias de governo. Enfim, foram anos admiráveis, que não merecem esquecimento.

Dificilmente o Congresso e o Executivo se envolveram em jogos amorosos tão intensos quando de outra intervenção no desenho constitucional do país, durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Com efeito, a tramitação e a aprovação final da emenda constitucional da reelegibilidade definiram um cenário ímpar para a materialização do princípio da gratidão.

As suspeitas correntes a respeito da presença de mecanismos de sedução, através do chamado "mensalão" (termo cuja elegância estilística replica à perfeição a do seu divulgador), reiteram as virtudes do presidencialismo de coalizão. Em termos diretos nada de novo, exceto a manifestação compulsiva e deseducada do apetite: não me ocorre ter testemunhado algo semelhante à reivindicação pública por parte do presidente da Câmara de uma diretoria de empresa estatal, como esteio de "governabilidade".

Não desconheço o argumento dos que defendem a inevitabilidade de tais artes amorosas como forma de obter maiorias, ao sustentar que, desse modo, importantes decisões para o País tornam-se possíveis. Nessa chave, invertemos o bom La Rochefoucauld: trata-se da homenagem que a virtude presta ao vício. No entanto, o preço a pagar é a descaracterização de qualquer vestígio representativo em nosso sistema político. Trata-se de uma erosão cuja reversão está além do alcance de qualquer "reforma política". Tal como está, a política reduz-se aos jogos entre o Executivo e o Congresso, lugar de coalizões guiadas pelo amor e pelo ódio, sendo este tão-somente a véspera do amor de amanhã.

E de que amor se trata? Dr. Freud não hesitaria em denominá-lo como um amor inibido em sua finalidade. Em outra chave, sem nenhum ranço moralista e para quem observa a vida política a partir das galerias, é a própria idéia de governo representativo que acaba erodida. Não há vida republicana possível na qual a representação consiste em representar os apetites dos próprios representantes e na qual a agenda do governo orienta-se para a sua satisfação.

É possível, tal como David Hume dizia das paixões, que tais apetites venham a ser controlados pelo seu exercício excessivo. Que da exibição dessa forma peculiar de amor um efeito de esclarecimento se produza e requalifique o debate público. Até que isso se dê, ao que tudo está a indicar, seguimos com a máxima: presidencialismo de coalizão, só com mensalão.