Título: Entre a esperança de Lula e o desastre anunciado
Autor: Mônica Manir e Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Aliás, p. J4

Sejam quais forem os rumos a que a atual situação política vai conduzir o país nos próximos dias, semanas ou meses, apenas duas coisas é possível dizer agora com absoluta segurança: esta é a mais dramática crise de governo que se instaurou desde a posse do presidente Lula e seus desdobramentos e conseqüências são imprevisíveis. Todas as conjecturas, portanto, correm por conta dos tradicionais exercícios de futurologia, que devem sempre alimentar os espaços sedentos da mídia, ou das falsas profecias habituais, envoltas nos jargões dos "analistas" de variada cepa e idêntica arrogância: politólogos de botequim, experts de mercado, auditores de riscos países (ou de países "riscados"), publicitários de plantão, estatísticos canhestros ou pesquisadores de opiniões alheias, em geral induzidas. Se os fatos se tornam cada vez mais imprevisíveis daqui para a frente - no ritmo e na volatilidade próprios da instabilidade geral que dominou a cena, o enredo e a ação dos principais atores -, ao voltarmos na máquina do tempo, no entanto, os contornos e a natureza de seus principais ingredientes, com seu inquestionável poder corrosivo, vistos lá de trás, de um tempo não muito distante, adquiriam realce de obviedades. Somente o ponto cego ofuscante que parece siderar alguns membros do núcleo de poder, a autocomplacência triunfalista que se compraz em mirar os ouropéis da vitória retumbante, mas já pretérita, ou a mera recusa ao simples recurso do bom senso seriam capazes de ignorá-las.

Para não soar abstrato, cito dois exemplos, não só emblemáticos, mas a meu ver decisivos no desencadeamento e no posterior agravamento, até limites inauditos, de desagregação política do governo Lula. Refiro-me, antes de mais nada, ao episódio Waldomiro Diniz, em que a reação defensiva do PT e do Planalto acabou por impor a primeira cunha no mandato de esperança delegado por dezenas de milhões de brasileiros ao operário feito presidente (é claro que uma reestruturação plena e imediata da Casa Civil e, com ela, da função articulatória interministerial do governo, e deste com o Congresso, teria de ter sido posta em marcha - sua ausência produziu danos visíveis). Mais recentemente, o segundo ato de um desastre anunciado: a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, derrotando numa só cajadada dois candidatos petistas (neste caso, a ida para a votação com o racha explícito entre dois postulantes lembra cenas de primarismo pré-político que até mesmo embates estudantilescos de grêmios ginasianos mal conseguiriam imitar).

Mas, afinal, que passa, companheiros? Será que isso são apenas nuvens passageiras do jogo democrático, como sugere a fala acaciana do recém-desembarcado ministro Dirceu, aterrissando de seu curto porém altamente relaxante veranico ibérico (por supuesto...)? Será que é esta a hora exata de brindarmos ao livre jogo das partes, à estação aberta das denúncias, à ilimitada feira vã de discursos jurados de nada mais dizer que a "verdade", mesmo que fatiada ao sabor de ventos, santos e safos? E que dizer, então, do também acaciano presidente do PT, José Genoino, que de sua respeitável pregressa experiência parlamentar parece contudo ter trazido em sua bagagem um dos vícios mais persistentes da elite conservadora brasileira: o poder de repetição da frase oca? Esqueçamos por ora o arremedo de entrevista coletiva do tesoureiro Delúbio, pelo patético que foi a encenação de um script mal decorado.

Para além de episódios e personagens - alguns como o "deputado-bomba" e presidente do PTB, aliado de primeira hora do governo, sempre representado nos limites do grotesco ou até do abjeto, obtendo audiência enorme justamente pela morbidez incorrigível de parte apreciável do público e da mídia -, tentemos entender algumas linhas históricas do mal que cerca Lula e o PT governista: a maldição do deus Mamon. E no passado cercou outros governos de esquerda alçados ao poder pela via eleitoral, sem maioria parlamentar estável nem hegemonia consolidada no conjunto da sociedade.

Em texto inspirado de sua juventude, inserido nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Karl Marx satirizava, com inegáveis dotes literários, o poder crescente que o Dinheiro passava a ter como equivalente geral de todas as mercadorias, e estas como principais entes das relações sociais que se generalizavam em escala planetária. Este deus Mamon, conhecido dos profetas bíblicos do Velho Testamento e dos apóstolos da primeira era cristã, vinha para ficar. Não só ficar, como analisa o jovem Marx, mas para determinar relações entre países, povos e pessoas; para forjar vontades, ações, sentimentos e ressentimentos; para acender o pavio ora mais curto de guerras ora mais longas e globalizadas, feitas de pólvora pesada, mas também cotidianamente com o poder cumulativo e destrutivo concentrado num punhado de corporações financeiras; para capturar as mais nobres e razoáveis razões de Estado; para converter a moral burguesa em moeda fácil de toda hipocrisia humanista; para fazer do teatro político dos Estados nacionais modernos uma farsa picaresca, um reality show obsceno não pelo que mostra, mas justamente pelo que esconde. Em outro registro, mas com muitas afinidades no que toca ao sentido maior dessa crítica visionária, o genial poeta maranhense Sousândrade, em 1877, no famoso Canto X de O Guesa, antecipava-nos o cenário infernal de Wall Street, nas tramas de Mamon pela febril Nova York.

O que a história do século 20 revelou com muita ênfase foi a contradição extrema de governos populares ou de esquerda que formaram regimes políticos a partir de vitórias eleitorais importantes, mas longe ainda de constituírem consensos sociais sólidos ou maiorias legislativas tranqüilizadoras. O resultado é que muitas vezes as alianças políticas resultantes ou até certo ponto necessárias a partir dessa fragilidade estrutural confundem a identidade estratégica, fundada em princípios programáticos de fundo, com as conveniências táticas do apoio conjuntural ou acordo pontual e apenas momentâneo. Dessa confusão entre modos distintos de construir frentes de governo nasceram muitas das derrotas mais trágicas de forças populares diante dos partidos, instituições e programas representativos das relações centradas sob a égide mais ou menos visível do deus Mamon. Foi assim na débil e curta passagem do governo da Frente Popular de Leon Blum, na França, em 1936-1937; seria tragicamente assim, também, com a república popular na Espanha, de 1936, até seus últimos estertores, numa Barcelona arrasada pelos fascistas do generalíssimo Franco, em 1939.

Mais próximo de nós, o governo da Unidade Popular chefiado pelo médico Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 73, tentou reviver a utopia de um socialismo gradualista com minoria parlamentar continuada e contra a força ativa da CIA e seus aliados internos, entre eles grupos econômicos poderosos e a corporação militar reacionária que entronizaria, mediante golpe e ditadura com requintes genocidas, Pinochet, pesadelo de toda uma geração.

Na esfera municipal e tupiniquim, ainda está por fazer um balanço exaustivo da derrota da prefeita Marta Suplicy em 2004, depois de sua recondução à prefeitura paulistana ter sido considerada em certos círculos líquida e certa. Nem só de "todo poder à periferia" parece se sustentar uma política social urbana numa megalópole como São Paulo. Além de uma aliança tortuosa e esquizofrênica, de um lado (rejeita-se o PMDB de Quércia, mas abraça-se o PP de Maluf), o mal do excesso de confiança publicitária, de outro, calcado num "dudamendoncismo" tão extravagante quanto ilusório, parece ter produzido efeitos eleitorais danosos e irreversíveis.

Entenda-se: no Brasil de hoje, ao contrário do que apregoam, tanto à direita como à esquerda, certos arautos do caos, não estamos à beira de colapsos do regime político civil, nem sob ameaça de golpes fascistas ou assemelhados. Não: o regresso possível do neoliberalismo somente significará a submissão mais pragmática e "realista" às ordens do deus Mamon. Que tem, desde já, neste PT das "alianças sem fim" e neste governo da cordialidade sem limites com os adversários de ontem e inimigos históricos de sempre, seu servidor entre inesperado e constrangido, mas a cada hora mais distante dos milhões de desesperançados da nação que um dia fizeram da estrela petista sinal de diferença no solo gasto da velha conciliação conservadora brasileira. Aquela que sempre diz que mudará para tudo ficar como está.