Título: Tradição e busca do lucro disputam espaço na capital da cachaça fina
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Economia, p. B11

Cofiando a longa barba grisalha, e soltando mais uma das suas conhecidas gargalhadas em câmera lenta, Antônio Rodrigues, ou Toni, como é chamado por todos em Salinas, vê a fumaça elevar-se da sua fazenda nos arredores da cidade, e comenta: "Isto é que é visão boa, já estão alambicando, e o dinheiro vai entrando no meu bolso'. Figura folclórica de Salinas, a capital brasileira das cachaças artesanais de alto padrão, Toni Rodrigues representa uma nova mentalidade capitalista, que está fazendo explodir a produção da bebida da pequena cidade no norte de Minas Gerais. Salinas tornou-se sinônimo de cachaças refinadas por causa de marcas como a mítica Anísio Santiago (antiga Havana), cuja produção reduzidíssima, em torno de 15 mil litros por ano, está na mesma família desde os anos 40, com preços por garrafa que vão de R$ 150 a R$ 250. Agora, porém, empreendedores como Rodrigues querem ganhar muito dinheiro, vendendo cachaça em volumes de milhões de litros por anos, sem perda do alto padrão de qualidade associado à cidade.

Os números mostram o aumento vertiginoso da produção. Segundo a Empresa de Extensão Rural (Emater), a produção de Salinas em 1985 foi de 216 mil litros de cachaça. Em 1995, já era de 640 mil litros, pulando para 1 milhão em 1999, 1,4 milhão em 2000, 2,5 milhões em 2004, devendo atingir 3 milhões neste ano. As cifras podem parecer pífias diante da produção nacional de quase 1,5 bilhão de litros, mas não seria mesmo de se esperar que a ponta mais refinada do mercado, como a maior parte das cachaças de Salinas, fosse competir em volume com as grandes marcas comerciais ou com o consumo maciço de pingas inferiores.

São os planos de empresários como Rodrigues, porém, que mostram o quanto a produção de Salinas ainda pode crescer. Os números soam um pouco discrepantes, porque a soma da produção declarada pelos produtores ultrapassa o total do município informado pela Emater, mas servem para evidenciar a escalada da produção. Segundo Rodrigues, a sua produção em 2004, das marcas Seleta, Boazinha e Saliboa, atingiu 2 milhões de litros, devendo chegar a 3 milhões em 2005. "Em 2010, vamos produzir 10 milhões de litros."

Um exemplo ainda mais gritante da mudança de mentalidade é o da cachaça Tabúa. Controlada pela mesma família desde a fundação, em 1939, a marca nem ao menos era registrada até cerca de dois anos atrás. As gerações de Olímpio Mendes de Oliveira, o fundador (já falecido), e de seu filho Alfredo, 57 anos, mantiveram um negócio artesanal de escala mínima, inferior a 10 mil litros por ano.

Agora, o filho de Alfredo, José Lucas Mendes de Oliveira, 30 anos, mudou completamente a escala do negócio. Morando em São Paulo, e em associação com seu sogro, ele está investindo um valor não revelado numa fábrica com capacidade de 5 milhões de litros por ano. Segundo José Lucas, a fábrica já produziu 600 mil litros na safra de 2004. A fase de produção de cachaça em Salinas vai de maio a novembro, quando é colhida a safra de cana. No resto do ano, a maior parte dos alambiques fica parada. Essa etapa é aproveitada para limpeza e melhorias técnicas.

José Lucas tem planos ambiciosos, e uma linguagem bem diferente do estilo interiorano e singelo de boa parte dos produtores de cachaça de Salinas. "Somos um produto artesanal com estrutura empresarial." Ele explica que, a partir de São Paulo, a empresa está desenvolvendo um trabalho de marketing e distribuição abrangendo diversos pontos do País, e que pretende diversificar a linha de produtos, acrescentando uma cachaça "premium" (maior período de envelhecimento), e uma mais popular, sem perder a qualidade. O objetivo é pôr a fábrica de 5 milhões de litros anuais em pleno funcionamento em dois anos.

No extremo oposto em termos de escala e de mentalidade, estão produtores como Noé Santiago Soares, 62 anos, e seu filho Eilton Santiago, 40, proprietários da marca Canarinha, que produzem de 10 mil a 12 mil litros por ano. Noé é sobrinho de Anísio Santiago, patriarca das cachaças de Salinas, morto em 2002, aos 91 anos. Eilton e Noé são íntimos de Oswaldo Santiago, filho e sucessor de Anísio. A Canarinha, que pode chegar a R$ 40 fora de Salinas, também tem seu círculo de cultores, como o paulista José Costa Gonçalves, do mercado financeiro, que liga para o alambique para encomendar a cachaça. Outra cachaça de mesmo perfil é a Lua Cheia.

Morando numa casa modesta no povoado de Nova Matrona, no município de Salinas, Noé é uma referência em termos de produção artesanal em pequena escala, que defende em sua linguagem peculiar: "Quando a produção é bastantona (sic), não tem a mesma qualidade."

Rodrigues, o maior produtor de Salinas, que diz faturar entre R$ 900 mil e R$ 1,2 milhão por mês, embolsando um terço de lucro, descarta a superioridade da pequena escala. Reinvestindo a maior parte dos ganhos não só em expansão mas também em qualidade, ele conta como sua produção incorporou novos rigores e a contribuição de técnicos e cientistas. "Se eu limitasse drasticamente a produção, minha cachaça ia ser tão cara quanto a Anísio Santiago ."

Um dos p ontos polêmicos entre os defensores dos métodos tradicionais e os que querem expandir a produção é o tipo de alambique. Em Salinas, todos são de cobre, considerado superior aos de aço inoxidável. Há, porém, uma distinção entre o alambique de capelo, usado só para produções muito pequenas, e os com serpentina, adotado pelos produtores de maior escala. No primeiro, a condensação dos vapores da cachaça é feita com jatos de água sobre a parte de cima do alambique, o capelo. No segundo caso, o resfriamento é feito pela circulação do vapor por uma longa serpentina.

Para os tradicionalistas, o alambique de capelo permite limpeza mais eficiente e daria um toque especial à cachaça, o que é negado pelos produtores de maior escala. A polêmica, no fundo, gira em torno de diferentes estilos de vida e de formas de encarar a tarefa de produzir as melhores cachaças do Brasil.