Título: O caos na Bolívia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Notas e Informações, p. A3

O que se podia fazer, no plano institucional, para encontrar uma saída para a crise boliviana está feito. O Congresso, finalmente, aceitou a renúncia de Carlos Mesa; os presidentes do Senado e da Câmara, hostilizados pelos movimentos sociais e étnicos, desobstruíram a linha constitucional de sucessão e o presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodríguez, assumiu a presidência da Bolívia com a incumbência de convocar eleições gerais o mais depressa possível, até dezembro. Mas o problema boliviano não se resolve com a troca de um nome por outro, na presidência da República. Até porque o presidente, assim como os parlamentares, há muito não são considerados representantes de todos os bolivianos. Para os indígenas, que constituem a maioria da população, e para o proletariado que se aglomera nos arredores das principais cidades do país, eles representam um esquema de dominação política, econômica e social que os oprime há 500 anos e precisa ser destruído. Como os movimentos sociais e étnicos têm força suficiente para impedir o funcionamento do governo e das instituições, mas não têm força para tomar o poder - também não têm um projeto para o país, a não ser a noção, tão entranhada quanto vaga, de que precisam corrigir as injustiças sociais de que se julgam vítimas -, estabeleceu-se o caos.

Os episódios dos últimos dias mostraram a que ponto chegou o vácuo de poder e o caos político. Primeiro, La Paz foi cercada, isolada e, em seguida, ocupada pelos manifestantes, o que levou o presidente Carlos Mesa a reconhecer, mais uma vez, que não tinha condições de governar, só lhe restando renunciar. Não satisfeita com isso, a turba impediu que o Congresso se reunisse para aceitar a renúncia e dar posse a um novo presidente. Convocado para reunir-se em Sucre, novamente o Congresso não pôde se instalar, porque para a velha capital transferiu-se a baderna. E só depois que os presidentes do Senado e da Câmara anunciaram que não aceitariam cumprir o restante do mandato presidencial é que a multidão permitiu que o Congresso se reunisse.

Enquanto isso, chegavam a La Paz os mediadores da ONU, da Argentina e do Brasil, convidados pelo ainda presidente Carlos Mesa. Mas mediar o quê e com quem, se o governo é uma ficção, o partidos são meros espectros e as forças que provocaram a erosão do Estado boliviano apenas cuidam de seus interesses imediatos? O assessor internacional do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, segundo se informa, limitou-se à platitude cabível nas circunstâncias: certamente referindose ao rompimento dos contratos com a Petrobrás, afirmou que o Brasil respeitará as decisões soberanas da Bolívia, mas arcando aquele país com as conseqüências, ou seja, o corte dos investimentos da estatal brasileira. Até por volta de 1985, a Central Obreira Boliviana centralizava as reivindicações sociais e, de quando em quando, promovia as rebeliões e golpes de Estado que caracterizaram a história da Bolívia. Mas, a partir do ensaio de liberalização da economia, o setor mineiro perdeu importância econômica e política e os movimentos sociais se atomizaram, simultaneamente à pulverização da representação partidária e à emergência dos até então incipientes movimentos indígenas irredentistas.

As instituições, sempre periclitantes, não resistiram ao ativismo radical dos movimentos sociais e étnicos que se multiplicaram. O sistema de governo primeiro foi imobilizado pela pressão das reivindicações e dos conflitos sociais. Depois, desmoronou. No primeiro governo de Sánchez de Lozada, registravam-se 13 conflitos sociais por mês, em média. No governo Banzer, o número mais que dobrou. No segundo governo de Lozada, que foi obrigado a renunciar, a média era de 53 conflitos mensais. O interregno de Carlos Mesa foi um conflito só. O ordenamento constitucional tornou-se letra morta. Associações profissionais e de vizinhança e grupos indígenas, assim como bairros, se organizaram como unidades de autogoverno, sem vínculos administrativos e políticos com o Estado. Nos Departamentos mais industrializados, na região de Santa Cruz, o separatismo voltou a ser a palavra de ordem.

Grupos étnicos pregam abertamente a guerra civil, para decidir quem manda na Bolívia. Como realizar uma eleição nesse cenário caótico? Como evitar a intervenção das Forças Armadas?

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