Título: O verdadeiro poder mora nas sombras
Autor: Johanna Neuman
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Internacional, p. A16

*James Mann, ex-repórter dos jornais 'Los Angeles Times' e 'The Washington Post', é autor residente na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins The Washington Post O desmascaramento do ex-funcionário do FBI W. Mark Felt como o Garganta Profunda ofereceu aos Estados Unidos um raro vislumbre das duas esferas separadas que coexistem incomodamente no governo americano. Chamemos uma delas de Mundo Oculto e a outra, de Mundo do Talk Show. É impossível entender como as coisas funcionam em Washington sem considerar estes dois mundos contrastantes e a luta inerente e interminável entre eles. Bob Woodward compreendeu a diferença entre eles há mais de três décadas. As muitas pessoas que deram palpites errados sobre a identidade do Garganta Profunda não conseguiram entender isso. Elas normalmente superestimavam o papel e o poder do Mundo do Talk Show.

Quando digo Mundo do Talk Show, não me refiro apenas às pessoas nos debates de domingo. Na verdade, não havia muitos programas de entrevistas no início dos anos 70. Uso a expressão para me referir a todos aqueles indivíduos proeminentes que aparecem na televisão. Escrevem artigos e livros. Embarcam no circuito das palestras para discutir o que está acontecendo dentro do governo dos EUA ou qualquer administração que esteja atualmente no poder.

Freqüentemente, são os mesmos rostos reconhecíveis, de novo e de novo. Afinal (pelo menos é o que diz a lógica), se alguém é desconhecido, não deve ser muito importante ou não deve ter algo importante a dizer.

A maioria dos americanos supõe equivocadamente que seu governo é conduzido pelo Mundo do Talk Show - muito embora, na realidade, os habitantes deste universo possam não ter nenhum poder e possam não ter mais que uma conexão limitada com o funcionamento interno do governo.

Para citar apenas um exemplo aleatório: Ari Fleischer, o ex-porta-voz da atual administração Bush, é um tipo clássico do Talk Show. Mesmo fora do governo, seu rosto é reconhecível hoje. No entanto, no governo, ele não estava à mesa para as decisões fundamentais e, suspeito, não sabia muita coisa.

Ou considerem David Gergen, outra figura clássica do Talk Show, que ocupou altos cargos em governos republicanos e democratas. Gergen pode ser um especialista instruído em percepções ou relações públicas - mas não era um tomador de decisões. Repórteres que dependem de alguém como Fleischer ou Gergen como fonte tendem a descobrir apenas o que um determinado governo quer que a imprensa saiba.

Mark Felt foi um clássico representante da outra esfera, o Mundo Oculto. Este inclui burocracias e instituições por meio das quais os Estados Unidos precisam operar todos os dias - o FBI, a CIA, as Forças Armadas. O Mundo Oculto, por natureza, não tem rosto, mas é permanente. Governos vêm e vão; as grandes organizações permanecem. Normalmente, o Mundo Oculto segue diretivas, mas às vezes contraria, subverte e mina (bem antes da invasão de Watergate, Felt não gostava do que o governo Nixon pedia que o FBI fizesse). Os líderes políticos podem menosprezar o Mundo Oculto, mas freqüentemente não têm escolha a não ser trabalhar com ele e por meio dele. Os presidentes e partidos políticos americanos não têm pessoal próprio disponível 24 horas por dia em Jacarta ou Dubuque; a CIA e o FBI têm.

Woodward teve, desde o início de sua carreira de repórter, uma compreensão magnífica (mesmo que intuitiva) do Mundo Oculto. Ele servira na Marinha em Washington; segundo o próprio relato no Washington Post na quinta-feira da semana retrasada, seus deveres militares incluíram tarefas na Casa Branca. Foi lá que, num encontro casual, ele conheceu Felt.

Repórteres demais caem na armadilha de acreditar que o Mundo do Talk Show é o centro das coisas. Desde os anos 70, a especulação infindável sobre a identidade do Garganta Profunda se concentrou repetida e perdidamente em rostos famosos da era Nixon, como Gergen, o estrategista político John Sears, o autor de discursos presidenciais Pat Buchanan, o presidente do Comitê Nacional Republicano George H. W. Bush, a assessora de Imprensa da Casa Branca Diane Sawyer - pessoas que tinham pouco ou nenhum acesso às informações ocultas sobre o poder que o Garganta Profunda fornecia. Nem mesmo Alexander Haig, que em 1972 era um alto assessor do conselheiro de Segurança Nacional Henry Kissinger e mais tarde foi objeto de alguma especulação sobre o Garganta Profunda, tinha esse tipo de informação (Haig tinha conexões com o Mundo Oculto, mas neste caso era a burocracia errada - a segurança nacional, não o poder).

Mesmo depois de Felt e sua família terem se apresentado na semana retrasada, alguns jornalistas pareceram agarrar-se a suas velhas ilusões de que os rostos que eles já conheciam são os mais importantes. Como o Garganta Profunda poderia saber alguma coisa se não freqüentava o Gridiron Club? O colunista Robert D. Novak, ele próprio um habitué do Talk Show, escreveu na semana retrasada sobre a "sensação geral dentro de Washington" de que o Garganta Profunda tinha de ser alguém "mais próximo do escândalo que um alto burocrata do FBI". Pessoas como Haig ou Gergen "pareceriam mais dramáticas" que Felt, afirmou Novak.

Mas é a qualidade monótona, quase enfadonha, de Felt e outros no Mundo Oculto que define sua essência e seu significado. Para eles, a instituição conta mais que o talento ou a fama individuais. Isto é o que eu tentava dizer num artigo de 1992 na revista Atlantic Monthly (que mencionou Felt entre alguns candidatos ao Garganta Profunda). O artigo dizia que a identidade do Garganta Profunda estava longe de ser tão importante quanto o lugar onde ele trabalhava, a saber, o FBI.

Como estes dois mundos, o Oculto e o do Talk Show, se conectam? No nível do dia-a-dia, eles não se conectam. Os membros do Mundo do Talk Show tendem a negar a existência do Mundo Oculto. O reconhecimento minaria a mitologia reinante segundo a qual alguns poucos rostos famosos tomam todas as decisões importantes, as levam a cabo e vão à televisão explicá-las. Não se pode pôr uma burocracia no ar ou fazê-la escrever um livro.

Enquanto isso, os habitantes do Mundo Oculto observam o Mundo do Talk Show com uma mescla de medo, reverência e fascínio. Ao longo da semana retrasada, houve considerável especulação sobre o que levou Felt, mesmo numa idade avançada, a manter o segredo.

A resposta, acredito, é que, como prisioneiro perpétuo do Mundo Oculto, ele considerava o Mundo do Talk Show uma força incontrolável, capaz de perturbar sua tranqüila existência. Os que operam com grande poder nas sombras desconfiam do clarão dos holofotes.

É claro que o Mundo do Talk Show e o Mundo Oculto se conectam - não nos níveis operacionais, mas bem no topo. O presidente, seu gabinete e os mais altos líderes de qualquer governo desempenham um papel em ambas as esferas. Por um lado, eles aparecem em público para explicar suas políticas. Por outro, eles também dirigem - ou, mais exatamente, tentam dirigir - a burocracia do Mundo Oculto.

E é isto que leva ao conflito interminável do tipo que estava em curso em 1972, quando o diretor do FBI J. Edgar Hoover morreu e Nixon tentou tomar o controle do órgão - o FBI de Mark Felt - para seus próprios desígnios.

Em muitos aspectos, aquela luta foi única. Hoover não só dirigira o FBI por décadas; ele praticamente o havia criado, e alcançara uma posição na qual podia desafiar ou até mesmo chantagear presidentes. Ninguém (espera-se) jamais terá esse tipo de poder novamente. Além do mais, é possível que nunca mais haja um governo tão decidido a fazer mau uso do FBI quanto o de Nixon - por causa da personalidade paranóica de Nixon e também porque as revelações de Watergate e a humilhante resignação de Nixon dissuadiram qualquer sucessor de seguir o mesmo caminho. Seria um erro desprezar as lutas burocráticas de 1972 como história antiga. Hoje, como em praticamente qualquer governo, pode-se encontrar batalhas comparáveis, mesmo que menores, pelo controle das burocracias. De fato, a observação desta guerra burocrática é muitas vezes a chave para a compreensão das dinâmicas do funcionamento de qualquer governo.