Título: O sonho acabou no Líbano?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Nacional, p. A17

Do conjunto Israel-Palestina já se disse: "Como vocês querem que isso ande? Tanta história por tão pouca geografia!" A fórmula conviria a este país vizinho de Israel que é o Líbano: minúsculo, mas dilacerado, mutilado, rapinado, esfacelado, encarcerado, humilhado pela História desde o tempo dos romanos. Eis um resumo de sua história recente: uma guerra civil atroz de 1975 a 1990 e 20 anos de ocupação do sul do país pelos soldados israelenses. Por fim, a ocupação síria durante 30 anos, até 14 de março de 2005. Nesse dia 1 milhão de libaneses expressaram na Praça dos Mártires, em Beirute, sua cólera contra os sírios, suspeitos de ter mandado assassinar o ex-primeiro-ministro Rafic Hariri. Alguns dias depois, os soldados sírios se mandaram.

Os libaneses venceram; fala-se da Revolução dos Cedros como se falava da Revolução Laranja na Ucrânia ou da Revolução das Rosas na Geórgia. É a felicidade. É o fim da guerra civil. O fim da História.

Pensa-se na queda do Muro de Berlim em 1989. As flores flutuam sobre os fuzis. E nesse país fragmentado em mil famílias inimigas, dez religiões que se odeiam, pela primeira vez, as diferenças se dissipam. Um único povo. Uma única comunidade. Um mesmo sol. Haverá eleições livres. O futuro retoma o caminho.

Três meses mais tarde, para onde foi esse futuro? Bem, ele não se agüenta, o futuro! Ele faz uma pausa. Ele convoca o "serviço de pós-venda" franco-americano. É fato que começaram as eleições, mas que estranhas eleições: cada região do Líbano vota como os chefes dessa região exigem - velho hábito.

Em Beirute, vitória do filho do ex-primeiro-ministro assassinado (a política familiar, clientelista ou comunitariuma tradição). No sul, que ainda é marcado pela longa ocupação israelense, as 23 cadeiras são ocupadas pelo Hezbollah e seu aliado Amal, isto é, as milícias xiitas terroristas que eram pró-sírias (não esqueçamos que o grupo armado Hezbollah foi criado pelos pasdavan - os guardiães da revolução iraniana - precisamente em 1982, em resposta à invasão do sul do Líbano por Israel).

Hoje e no dia 19 , o escrutínio terá lugar nas outras regiões. O resultado ali também será ditado pelos chefes de comunidade ou de famílias. A lição desses escrutínios é límpida: a Revolução dos Cedros era uma ilusão. O "fim da História" era uma farsa. O povo milagrosamente reunido em 14 de março se pulverizou segundo as antigas fronteiras internas, clãs, famílias e religiões. A guerra civil não se acalmou. Ela campeia.

Os clãs se desafiam. Há os clãs familiares (os Hariris, os Jumblatts, que dirigirão, sem dúvida, o futuro poder). Há os clãs religiosos (freqüentemente dividindo as famílias): os drusos de Walid Jumblatt, os maronitas (católicos de rito sírio), os populistas do general Michel Aoun retornando de seu exílio na França, o Partido Nacional da família Chamoun, os sunitas da família Hariri, etc. Todos eles sempre se estriparam. E continuam fazendo isso. Não compreenderam o que só os jovens libaneses compreenderam: que o "Líbano de papai", o Líbano das famílias, dos clãs, das comunidades, das religiões, dos ódios, das heranças, dos corruptos, reconduzirá o país ao abismo.

E há os xiitas que alimentam as fileiras do Hezbollah e do Amal. É preciso tratá-los num lugar à parte. Primeiramente porque eles são menos ligados a famílias do que a uma ideologia, a do islamismo radical. Esses dois grupos são terroristas, mas todos os demais têm armas. Os armamentos não são os mesmos: os Jumblatts possuem sem dúvida muitas metralhadoras. O Hezbollah tem, além de mais metralhadoras, armas de longo alcance. Um país que abriga uma milícia armada não pode se dotar de hábitos democráticos. É por isso que franceses e americanos, pela primeira vez de acordo, fizeram votar em setembro de 2004 a Resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU. Ela pede a saída das tropas sírias (o que ocorreu em abril) e também o desarmamento das milícias.

Muito bem. O chato é que os chefes do Hezbollah, quando se fala em desarmamento, dão risada. Eis como Nasrallah, o carismático xeque do Partido de Deus acolheu a sanção: "Alguns dizem que nós temos 12 mil foguetes Katiusha. Pois bem, digo que temos mais de 12 mil. E todo o norte da Palestina ocupada (por Israel ) com suas colônias, seus aeroportos, suas fazendas está sob o fogo de nossos combatentes." Essa é a carta mestra do Hezbollah: se ele tem armas de longo alcance, não é para atacar facções do Líbano. É contra Israel. Como disse Nasrallah, "a mão, seja qual for, que quisesse pegar nossas armas, seria uma mão israelense. Ela deveria ser cortada". O resultado é que a resolução 1559 da ONU, embora necessária, é letra morta. Isso é ainda mais lamentável porque, se os outros grupos libaneses estão armados até os dentes, é prevendo a ameaça terrível que constitui a milícia do Hezbollah.

Uma questão se coloca: como a ONU e dois países poderosos (Estados Unidos e França) se deixam ridicularizar pelo Hezbollah? Primeiramente, é notório que as resoluções da ONU sobre Israel foram freqüentemente ignoradas por Israel. Depois, quem poderia impor esse desarmamento? Certamente não o Exército libanês, que é de maioria xiita e manteve uma estreita colaboração com o Hezbollah no tempo da ocupação israelense.

Se a força não pode desarmar o Hezbollah, seria o caso de tentar a diplomacia? A França tentou seduzir o Hezbollah com vantagens políticas em troca do desarmamento. Fracasso! E o desarmamento do Hezbollah não é uma unanimidade mesmo na população libanesa. Com efeito, os maronitas são quase unânimes em aprovar o desarmamento. Mas 31% dos sunitas e 79% dos xiitas se opõem a ele.