Título: Próximo passo: unir Europa de novo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Internacional, p. A18

Uma luta de idéias, quase de ideologias, está surgindo na Europa entre um líder britânico cuja sorte mudou ligeiramente e os moribundos líderes da França e Alemanha. Uma certa Europa morreu semanas atrás - o continente bem intencionado, arrojado e economicamente tépido que tentou um novo patriotismo europeu apesar do descontentamento criado por postos de trabalho perdidos, crescimento perdido e confiança perdida.

Não, obrigado, disseram dezenas de milhões de europeus na França e Holanda, rejeitando uma proposta de Constituição que para eles parecia envolver um projeto europeu sem identidade, prosperidade e até clareza de geografia. Onde, perguntaram, a Europa vai terminar? E eles deram uma resposta suficientemente clara: não na Turquia.

Mas o que eles queriam no lugar dessa mancha geopolítica ficou menos claro. Quando Tony Blair, o primeiro-ministro britânico, encontrar-se com o presidente Jacques Chirac, da França, e o chanceler Gerhard Schroeder, da Alemanha, na reunião de cúpula da União Européia na quinta-feira, eles vão dar início a uma grande operação de salvação européia: uma tentativa de definir alguma nova idéia para uma Europa definida há tempos pelo impulso para uma união sempre mais próxima.

"Eles vão tentar manter algumas das melhores idéias da Constituição, como um ministro de Relações Exteriores europeu ou eleições eletrônicas para tornar a tomada de decisões com 25 membros possível", disse William Drozdiak, presidente do American Council na Alemanha.

O que eles não vão dizer oficialmente é que a Constituição está morta. Mas, sob todos os aspectos, ela está. A Grã-Bretanha, quase certamente, nem sequer vai se incomodar em fazer o referendo que havia planejado sobre o assunto. A idéia de que a França e a Holanda podem votar novamente (e novamente, até acertarem?) parece longe de se realizar.

É provável que passe em branco também o duelo europeu que vai definir a direção do continente nos próximos anos: entre o que Chirac chama de concepção ultraliberal da Europa e o que às vezes é conhecido como "capitalismo da Renolândia", ou seja, uma economia de mercado com um alto grau de proteção social, como a praticada na França e Alemanha.

Blair incorpora a primeira idéia: a economia britânica está explodindo e o desemprego está abaixo dos 5%. Os líderes francês e alemão incorporam o modelo da Renolândia: o desemprego em ambos os países passa de 10% e o crescimento evaporou.

A conclusão a ser tirada desse duelo parece evidente, mas não para todo mundo. Para alguns na França, incluindo um novo movimento de esquerda, as dificuldades do país só demonstram a necessidade de mais proteção em relação às práticas de livre mercado em todas as partes da Europa.

O verdadeiro debate está quase ausente porque Jacques Chirac, supostamente um político de centro-direita, passou a maior parte de seu tempo atacando o mercado. "Chirac, em sua infinita mediocridade, administrou um governo bem à esquerda de Blair, político trabalhista, e também à esquerda de Schroeder, um social-democrata", disse Alain Finkielkraut, escritor e filósofo francês. "O problema com esse país é que quem deplora o desemprego promove o mesmo sistema rígido que o perpetua."

Uma lição dos votos "não" é que um sistema que não promove a prosperidade está condenado. Mas se Blair, cuja estrela tem brilhado na sombra de França e Alemanha, vai convencer seus parceiros europeus a mudar não está claro.

Um fator que pode funcionar a seu favor é que Angela Merkel, líder da oposição democrata-cristã da Alemanha, pode ser eleita chanceler no fim do ano. Ela vê alguns méritos no mercado e também é fã dos EUA. Portanto, a França pode ficar cada vez mais isolada.

Mas as ondas do sentimento esquerdista, os arroubos de nacionalismo direitista e as explosões de descontentamento - tudo isso motivado pelo triunfo do "não" à Carta da UE são muito poderosos para serem contidos e não estão confinados à França.

Era uma coisa quando a Europa parecia oferecer a possibilidade de tornar-se uma força política e econômica, até federal, coesa. Mas esse aprofundamento foi sacrificado em função da ampliação do bloco.

O euro tinha como objetivo inspirar as pessoas. Foi concebido não apenas como uma moeda, mas como um meio para um fim político - uma espécie de Estados Unidos da Europa -, que por sua vez garantiria o sucesso de longo prazo de uma moeda compartilhada. Mas o euro foi isolado sem sua contrapartida política. Como resultado, uma ampliação ainda maior para incluir Romênia e Bulgária até 2007 será mais polêmica e a ampliação para incluir a Turquia parece condenada.

O governo Bush vai continuar a favorecer a entrada da Turquia, em um período de tensões entre os mundos cristão e islâmico. Mas nesta e em outras questões, o governo provavelmente vai encontrar uma Europa distraída. Exatamente no momento em que o governo esperava colher os frutos de sua iniciativa conjunta de melhorar os laços com a União Européia - na forma de assistência crítica no Irã e nas conversações sobre o status final da província sérvia de Kosovo -, confronta um continente consumido com suas próprias questões.

Dificuldades foram superadas antes na Europa. O impulso de mais de meio século para unir o continente sempre bateu em obstáculos - o "não" de De Gaulle à Grã-Bretanha, o "eu quero meu dinheiro de volta" de Margaret Thatcher, o conselho de Chirac a países como Polônia para "se calarem" sobre o Iraque. Mas, nos últimos dias, todo o projeto europeu foi questionado pela primeira vez.

E somente nestas mais recentes votações uma tendência preocupante surgiu: os jovens quase não têm entusiasmo por essa Europa que estão lhes oferecendo. Na França, o único grupo etário a votar a favor da Constituição foi o de mais de 65 anos.

A União Européia nasceu tanto de um entendimento dos cataclismos comuns do passado quanto de uma visão do futuro. Para os jovens, o passado acabou. O futuro parece incerto. Só vai entrar em foco se as três grandes potências da União Européia - Grã-Bretanha, Alemanha e França - puderem cruzar o abismo ideológico que as divide. Por hora, parece improvável.