Título: A civilização européia está decaindo?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Internacional, p. A18

*Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford Observando a Crise européia (creio que o C maiúsculo se justifica), sinto-me compelido a ler Arnold Toynbee, o historiador filosófico da ascensão e queda de civilizações. Isso porque uma interpretação de longo prazo plausível da reação caótica na Europa desde o "não" francês de 29 de maio é que esses são os sintomas de uma civilização em declínio, se não em decadência.

É absurdo que, ante a maior contestação popular ao projeto europeu desde a sua concepção, França e Grã-Bretanha não consigam pensar em nada melhor que se digladiar num bate-boca perverso sobre as respectivas contribuições para um orçamento da União Européia que custa ao contribuinte médio britânico ou francês menos de 5 euros por semana. Como os Bourbons, nossos líderes não se esqueceram de nada e não aprenderam nada.

Se eu fosse chinês, estaria rindo o caminho todo até o banco. Depois dos séculos europeus, de aproximadamente 1500 a 1945, e de um século americano de 1945 até algum momento da primeira metade deste, o século asiático desponta no horizonte. Como observa acidamente Thomas Friedman, do New York Times, enquanto a Europa está tentando conseguir a semana de 35 horas, a Índia está inventando o dia de 35 horas. Seja qual for a nossa vantagem "baseada no conhecimento", nenhuma economia pode competir bem nesses termos. As coisas precisam mudar para continuar como estão.

Toynbee perguntou por que as civilizações se enfraquecem e caem. Suas próprias respostas, gerais e esquemáticas, foram em grande parte rejeitadas por historiadores profissionais, mas a pergunta continua oportuna. Por exemplo, entre as características de civilizações em desintegração ele encontra os gêmeos siameses de arcaísmo e futurismo. Alguns afundam na memória de uma idade de ouro que nunca existiu enquanto outros glorificam um futuro imaginado. Isso soa familiar? Então aí está o que ele chama de "idolatrar uma instituição efêmera". Para alguns europeus de hoje, esse efêmero idolatrado é o Estado-nação; para outros, a UE. E há a o seu ponto básico e, talvez, bastante óbvio de que o declínio de civilizações avança numa série de debandadas e reagrupamentos.

Na primeira metade do século 20, a Europa infligiu a si mesma a mãe de todas as debandadas. Na segunda metade, produziu um formidável reagrupamento. Embora a União Européia não possa (e, em geral, não queira) se equiparar aos EUA em poderio militar, ela o faz em Produto Interno Bruto combinado e atratividade social. Ela é a maior congregação isolada de ricos e livres do mundo. Mais ainda, ela acaba de ficar muito maior. Esse é um êxito extraordinário que, quando da morte de Toynbee no ano do primeiro referendo britânico sobre nossa integração à "Europa", quase ninguém previa.

No ano seguinte, 1976, Raymond Aron escreveu um livro intitulado Plaidoyer pour l'Europe décadente (Em Defesa da Europa Decadente). Sua grande preocupação era que a Europa Ocidental estava perdendo a autoconfiança, a vontade de vencer. O desafio que ele temia não era do Extremo Oriente que, Japão à parte, mal parecia um competidor naqueles dias, mas do próprio Oriente próximo: a metade da Europa governada por comunistas e dominada pelos soviéticos. Seus temores a respeito do Leste comunista se revelaram injustificados, embora um pessimista pudesse dizer que, num processo de "decadência competitiva", o Leste simplesmente desabou primeiro.

Em conseqüência, e em virtude da atração magnética e das políticas ativas da UE, oito democracias pós-comunista entraram na união em 1.º de maio de 2004. Nunca antes tantos Estados europeus foram democracias liberais, reunidas numa única comunidade econômica, política e de segurança. Mas a crise européia chegou apenas um ano depois desse triunfo - e em parte, foi causada por ele. Isso porque, entre muitas outras coisas, os votos negativos francês e holandês foram também um "não" às conseqüências da ampliação e à perspectiva de novas ampliações.

Trinta anos atrás, Aron se preocupava com uma espécie de auto-indulgência hedonista característica de sociedades decadentes. Sob pena de parecer um velhusco conservador cultural, o pensamento ocasionalmente me ocorre quando zapeio canais de TV britânicos e europeus, de Celebrity Love Island, passando por Big Brother, até os programas de debates alemães. Aron se preocupava também com as baixas taxas de natalidade da Europa, que de lá para cá caíram ainda mais. "A civilização do prazer autocentrado", ele ousou escrever, "se condena à morte quando perde o interesse pelo futuro."

Evidentemente, sob outro ponto de vista, liberal num sentido diferente, as taxas de natalidade muito baixas em países como Espanha, Itália e Alemanha são uma expressão do aumento da liberdade: a saber, o direito de escolha das mulheres. Mas é do senso comum que Estados de bem-estar social precisem então de alguém mais para sustentar tantos pensionistas. Que alguém esteja à mão: uma população jovem e vigorosa logo do outro lado do Mediterrâneo, ávida para vir trabalhar aqui. Mas a Europa está se mostrando péssima em fazer os imigrantes muçulmanos se sentirem em casa. O voto "nee" holandês foi, numa parte significativa, um voto contra a imigração muçulmana, e o "non" francês, contra o ingresso da Turquia na UE.

Essa análise da decadência européia guarda uma semelhança marcante com a de neoconservadores americanos e antieuropeus, cujas caricaturas grosseiras eu tenho tão freqüentemente combatido. Quanto a isso, eu diria duas coisas. Primeiro, os neoconservadores americanos seriam idiotas de exultar. Europa e EUA são duas partes de uma civilização maior. Se a velha Europa de um lado do Atlântico cair, ela poderá ajudar a nova Europa do outro lado do Atlântico nas relações de poder de curto prazo, mas isso será imensamente prejudicial aos interesses americanos no longo prazo. Segundo, cabe a nós provar que eles estão errados.