Título: A triste sina das crianças bruxas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2005, Internacional, p. A20

Em novembro de 2003, o senhor Agbo, zelador de um bloco de edifícios municipais de Hackney, um subúrbio de Londres onde vivem muitos imigrantes, encontrou, encolhida em uma escada, tremendo, uma menina de 8 anos. Estava descalça, seminua, cheia de cicatrizes, feridas e inchações, e paralisada de terror. Ao longo das semanas seguintes, com a ajuda de psicólogos e assistentes sociais, a polícia conseguiu reconstruir sua história. A menina, procedente do Congo ou de Angola, havia sido submetida a torturas sistemáticas nos 15 meses precedentes, por sua mãe, sua tia Sita Kisanga e um amigo desta, Sebastián Pinto, desde que uma noite um filho pequeno de Sita acordou chorando e jurando que a menina havia aparecido em um sonho seu e ameaçado levá-lo de volta para o Congo. A família concluiu que a menina estava possuída por um espírito maligno, um ndoki, e devia ser exorcizada. Fizeram-na jejuar por três dias e depois passaram a tratar de expulsar o demônio que a habitava.

Agrediam-na, chicoteavam-na, jogavam-lhe pimenta nos olhos, espetaram todo seu corpo e rosto com a ponta de uma faca e mantiveram-na muitos dias fechada em um saco de roupa que ameaçavam jogar no rio ou atirar da varanda do apartamento. No final, como o ndoki resistia, expulsaram-na de casa a pontapés. Os médicos da polícia constataram 43 ferimentos no corpo da criatura.

O caso dessa menina, cujo nome não pode ser revelado por razões legais, é apenas a ponta de um iceberg. Richard Hoskins, professor de religiões africanas do King's College, de Londres, que estudou durante muitos anos o tema no Congo e assessora a polícia britânica neste e outros cinco casos de exorcismo de crianças bruxas submetidas a torturas e crueldade nas comunidades de imigrantes, revelou que centenas de crianças de origem africana desaparecem todos os anos na Inglaterra sem que as autoridades consigam descobrir as razões do desaparecimento.

Em parte, por causa da falta de efetivos para efetuar uma vigilância cuidadosa nas comunidades e em parte por prudência, em vista da extrema suscetibilidade que existe em tudo que diz respeito às crenças e costumes das minorias étnicas, as autoridades reconhecem sua impotência em deter o que parece um fenômeno no qual centenas ou milhares de menores são submetidos na Grã-Bretanha a indizíveis brutalidades para exorcizá-los dos maus espíritos.

Há pouco mais de três anos, foi encontrado no Tâmisa o torso mutilado de um menino africano. O caso Adam deu origem a uma investigação na qual, entre outras coisas, a polícia descobriu que de 300 crianças africanas chegadas no aeroporto londrino de Heathrow em um período de três meses, só duas puderam ser localizadas. Das outras 298 não havia a menor pista. Por outro lado, várias associações de proteção à infância assinalaram que todo ano o número de crianças africanas que deixam de ir às escolas em que estão inscritas sem que dêem a menor explicação é de vários milhares. O professor Hoskins sustenta que esses desaparecimentos revelam, além de práticas religiosas violentas que podem terminar em crimes, a existência de redes bem estabelecidas que traficam menores imigrantes, que são vendidos como escravos domésticos ou sexuais.

Ao contrário do que parece à primeira vista, que a selvageria de que fazem uso nas comunidades de imigrantes os supostos exorcistas foi importada com elas da África, o professor Hoskins garante que não é assim, que se trata de um fenômeno local, resultante de uma perversa junção de crenças e superstições primitivas e do fanatismo com que a miríade de igrejas evangélicas fundamentalistas informais implantadas no Reino Unido recrutam seguidores entre os imigrantes. De fato, uma das torturadoras da minha história, Sita Kisanga, pertencia a uma dessas microigrejas evangélicas de seu bairro, chamada Igreja de Combate Espiritual, que promove o exorcismo e cujos pastores são todos exorcistas profissionais. Esta e outras congregações parecidas, surgidas de maneira informal, como desmembramentos muitas vezes extravagantes e grosseiros das igrejas protestantes tradicionais, para ganhar uma rápida aceitação entre os imigrantes incorporaram às doutrinas cristãs crenças e práticas como a do ndoki e os rituais exorcistas numa mistura, segundo Hoskins, explosiva. Segundo ele, nas diferentes comunidades étnicas que estudou no Congo muito raramente se exerce violência contra crianças, e as cerimônias de exorcismo, que são abundantes, normalmente são benignas. Não sei se isso é ciência estrita ou ciência matizada pela correção política, mas em todo o caso o que parece certo é que a maneira como esses grupos evangélicos informais que, sem o menos controle nem registro do Estado, operam nos bairros marginais das grandes cidades européias, pregando doutrinas fanáticas e delirantes, produzem às vezes conseqüências tão trágicas como a que se abateu sobre a menina de Hackney.

A globalização é um estado de coisas que funciona em todos os sentidos e em todas as direções. Leva as boas idéias e os conhecimentos mais modernos para todos os cantos do planeta e, ao mesmo tempo, permite que as superstições mais cruéis e estúpidas, e os preconceitos e convicções mais anacrônicos saiam dos pequenos redutos onde sobrevivem para contaminar e infectar sociedades e comunidades humanas que pareciam ter deixado para trás a barbárie e avançado de maneira irreversível na rota da civilização.

Sempre que vou à Inglaterra, depois de semanas ou meses, sinto uma grande satisfação, como se uma grande lufada de ar fresco invadisse meus pulmões. Pode ter mil problemas para resolver e outras tantas coisas para criticar, mas a sociedade britânica continua sendo, para mim, um modelo de civismo, de racionalidade, de sensatez e pragmatismo político, de um patriotismo são e não deformado por taras nacionalistas. É estimulante e gratificante comprovar que o taxista, a empregada da loja, o caixa do banco, o bilheteiro do trem, o pedestre a quem alguém pergunta um endereço, em vez de derrubar sobre o cliente ou o perguntador perdido seu mau-humor e frustração, maltratando-o com grosseirias, são amáveis, até humanos. Rapidamente direi que não conheço nenhuma outra grande cidade no mundo que tenha me parecido, como Londres, estar tão próxima dessa palavra de significado escorregadio: civilização.

Pois bem, na mais civilizada das cidades, vá saber quantas crianças padecem neste momento o mesmo martírio que a menina de Hockney e quantos outros, vindos como ela do Congo, Angola e tantos outros países africanos, são prostituídos ou vendidos como escravos por máfias inescrupulosas que, além disso, graças a esse tráfico, conseguem fortunas formidáveis. O professor Hoskins explica que esse tráfico se viu facilitado pela expansão da aids, que só no Congo deixou órfãs dezenas de milhares de crianças que vivem nas ruas das aldeias ou nos bosques e são presa fácil das máfias, que a pretexto de protegê-las, falsificam documentos, procuram pais adotivos e as levam para a Europa, por meios legais e ilegais, onde as convertem em mercadoria. É a barbárie pura no próprio coração da civilização.

Existe um remédio pronto para esta pavorosa realidade? De imediato, nenhum, desgraçadamente. Nem as autoridades estão em condições de acrescentar a suas fileiras os milhares de detetives e agentes que seriam necessários para exercer uma vigilância mais estrita em todas as comunidades e locais onde é praticado o exorcismo de crianças possuídas pelo ndoki nem as organizações de direitos humanos, proteção à infância e ajuda ao imigrante contam com os meios, nem com a ativa colaboração dos vizinhos dos bairros marginais, para pôr fim em um futuro próximo a essa praga secreta. O remédio, se vier, virá no futuro, no marco de uma política de integração do imigrante que, quando facilitar a adaptação deste a seu novo ambiente e o familiarizar com os direitos e deveres inerentes a um cidadão de uma sociedade democrática, proporcione a ele a ajuda indispensável para que essa reconversão cultural ocorra sem perdas e traumas. Para que isso aconteça, serão necessários, no entanto, muitos anos.

Entretanto, continuarão ocorrendo muitas barbaridades no seio da civilizada Londres (leia-se Europa). A história da menina mártir de Hackney teve um final feliz, menos mal. Recuperou-se de todas as feridas e agora refaz a vida no lar de pais adotivos que, segundo a polícia, a adoram. Os três torturadores, sua mãe, sua tia Sita Kisanga e Sebastián Pinto, que foram considerados culpados pelo tribunal de Old Bailey que os julgou, receberão estes dias penas que os manterão alguns anos na prisão. Devemos nos alegrar que pelo menos desta vez foi feita justiça? Na verdade, não há nada de que se alegrar. Foi feita justiça formal, sem dúvida, mas, no fundo, não acredito. O provável é que esses três infelizes estejam totalmente aturdidos e sem entender nada do que está acontecendo com eles. É evidente que nenhum deles queria machucar a menina que brutalizaram; seus golpes eram dirigidos ao ndoki que havia se instalado nela, um ser que sem dúvida os fazia viver no terror e envenenava cada segundo de suas vidas. Agora, rumo aos calabouços, devem estar convencidos de que o ndoki não só se instalou no pequeno corpo daquela criatura, mas agora seus miasmas e venenos impregnam tudo que os rodeia, Londres, a Europa, o mundo inteiro.

Agrediam-na,

chicoteavam-na,

jogavam pimenta em seus olhos, espetavam seu corpo com faca¿¿

E-mail: llosa@estado.com.br Site: www.llosa.com.br

De 300 crianças

africanas que desceram em Heathrow em três meses, só 2 puderam

ser localizadas¿¿