Título: Bolívia, terra em transe
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

A América Latina voltou às primeiras páginas da imprensa internacional pela instabilidade econômica, desordem política e social e corrupção. Depois de sucessivas crises no Equador, na Venezuela, na Argentina e no Peru, agora é a vez da Bolívia. Para entender o que se passa hoje no combalido e dividido país andino é necessário buscar as raízes profundas da crise, levando em conta, entre outros fatores, a forte herança cultural de uma civilização milenar e a reação da maioria da população pelos 500 anos de exclusão social. À diversidade étnica, indígena e "creolla", herdada da colônia e da época pré-hispânica, se somou a imigração européia que veio com a República. A elite governante espanhola e depois a de outros países europeus sempre atribuiu aos indígenas e aos mestiços a causa do atraso da Bolívia. A revolução nacional de 1952, buscando promover a educação, a reforma agrária, a nacionalização das minas e o voto universal, visou a "incorporar as maiorias despossuídas aos benefícios da civilização", procurando promover a integração nacional e aproximar as diferenças raciais e culturais.

Fracassado esse objetivo, nos anos 1990 as elites tentaram substituir a política de integração nacional pela da unidade na diversidade cultural, visando a manter a integridade do país. Mas a grande concentração de renda, a discriminação racial, o déficit democrático e a crescente pobreza (metade da população vive com menos de R$ 5 por dia) só se acentuaram, aumentando a frustração popular.

A partir de 2002 emergiu com vigor o poder político das populações indígenas, quase dois terços da população boliviana, a mais alta proporção no hemisfério (Equador, Venezuela, Peru e até o México também sofrem crescente influência dos movimentos indígenas). Gradualmente, assim, o poder central na Bolívia começou a perder o controle da situação e da governabilidade. O fator ideológico e a influência de outros líderes populistas da região, como o presidente Chávez, são outros elementos que devem ser levados em conta.

O que está ocorrendo hoje na Bolívia é uma luta de poder para saber quem tem o controle do governo. A crise até aqui se mostra menos violenta, porém mais complexa. A maioria indígena, aliada às federações operárias e a organizações antiglobalização, está confrontando as perspectivas de modernização capitalista do país e a elite européia, vista por ela como opressora, corrupta, racista e que vem sistematicamente alienando as riquezas naturais do país, como a prata, o estanho e agora o gás natural, sem nenhum benefício para o povo boliviano.

O país está virtualmente dividido em dois, geográfica e racialmente. Na região mais alta, tendo como centro El Alto e La Paz, se concentram as diferentes etnias indígenas, pobres, campesinas e sem perspectiva; na região plana, contígua ao Brasil, vive uma minoria branca e descendente de europeus, sobretudo na Província de Santa Cruz (50% da economia do país), onde a produção agrícola (soja) e de gás natural garante uma afluência e um progresso que não se reproduzem no resto do país.

Não chega a surpreender, nesse cenário, o movimento de autonomia das Províncias de Santa Cruz, Tajira, Pando e Beni para eleger seus governantes e preservar o controle da riqueza da região, ameaçada pelas ocupações dos grupos indígenas. Nem surpreendem as marchas pelas ruas de La Paz, visando a afastar presidentes que não entenderam o que está acontecendo, convocar uma Assembléia Constituinte e nacionalizar as empresas que exploram o gás natural, em seguida à lei dos hidrocarburantes, que determinou o cancelamento dos contratos de risco para a exploração do gás.

A perspectiva de uma guerra civil com elevado número de mortos parece estar afastada com a renúncia, pela pressão das ruas, de mais um presidente. O recém-empossado presidente Eduardo Rodríguez, cedendo ao clamor popular, já anunciou a convocação de eleições gerais para dezembro.

Evo Morales, líder indígena e cocaleiro, Jorge Quiroga, ex-presidente e político moderno, e Doria Medina, empresário progressista, são os nomes que despontam para concorrer à eleição. Morales, com altos índices de rejeição, talvez ainda não tenha chance de vencer, mas seguramente terá de ser levado em conta pela representatividade, pela força no Congresso e pelo poder de galvanizar as ruas.

Os militares não têm nem interesse nem vontade de intervir no processo político, apesar de estímulos da extrema esquerda. A ausência de clara liderança nas forças singulares, a complexidade dos problemas que afetam o país e a consciência de que um golpe armado significaria o isolamento da Bolívia pela aplicação da Carta Democrática da OEA afastam a possibilidade de intervenção das Forças Armadas, despreparadas para enfrentar a magnitude dos problemas internos, mas claramente contrárias a qualquer movimento secessionista das províncias limítrofes com o Brasil.

A instabilidade política e a desordem econômica no país vizinho não interessam ao Brasil. A presença de brasileiros em atividades econômicas, sobretudo na área agrícola (mais de cem proprietários detêm 40% da área plantada e 50% das exportações de soja) e de investimentos diretos na exploração e transporte de gás natural, em especial da Petrobrás, obrigam o Brasil a acompanhar de perto os acontecimentos políticos na Bolívia.

O Brasil quer ajudar a Bolívia a encaminhar seus problemas internos e, caso solicitado, estará pronto para mediar as diferentes facções. Os resultados de uma eventual convocação da Assembléia Constituinte, a nacionalização dos recursos energéticos e a questão da autonomia das províncias que se consideram vinculadas ao Brasil, mais do que à outra parte do território boliviano, são algumas das delicadas questões que poderão afetar os interesses nacionais brasileiros e nosso relacionamento com os demais países da América do Sul.

Rubens Barbosa, consultor,

presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil

nos EUA e na Grã-Bretanha